A IMPORTÂNCIA DA CONTEXTUALIZAÇÃO DA BÍBLIA

Postado em 11 de novembro de 2020 por

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Por: Luciano R. Peterlevitz

Antes de discorrer sobre o assunto, permita-me uma explicação semântica. Prefiro aqui o termo “contextualização” ao invés de “atualização”. Por uma simples razão: “contextualização” é o termo recorrentemente utilizado nos livros de hermenêutica que perfazem o meu referencial interpretativo da Bíblia. A rigor, na língua portuguesa, “atualizar” pode significar “adequar” (no sentido de promover uma adequação cultural). Este é o sentido na versão ARA (Almeida Revista e ATUALIZADA). Contudo, o termo também é sinônimo de “alterar, modificar”. Por isso, evito-o, aqui. Prefiro o termo “contextualizar”, mas respeito quem pensa diferente. Semânticas à parte, vamos ao assunto.

Contextualização da Bíblia diz respeito à aplicação do significado original dos textos bíblicos para o nosso mundo atual. Valendo-se dos postulados da hermenêutica, da exegese e da homilética, o intérprete da Bíblia identifica o sentido pretendido pelos autores da Bíblia e o aplicado para nossa vida e para nossa realidade atual.

Como intérpretes e transmissores da Bíblia, a nossa tarefar é garantir que a Palavra fale hoje tão claramente como falou nos tempos antigos.

Preciso admitir que a contextualização não é tarefa fácil. Contextualizar a Palavra para os nossos dias é uma árdua empreitada. Requer muito estudo, reflexão, oração e cautela. Mas é uma tarefa necessária, para que os valores eternos do Evangelho sejam transmitidos para a nossa geração.

O processo de contextualização bíblica necessariamente requer a identificação do corolário cultural das Escrituras. Quando entendemos o sentido pretendido pelos autores bíblicos, e quando aplicamos as suas afirmações para nossos dias, precisamos notar quais são os elementos culturais e temporários do texto e quais são os princípios supraculturais e eternos válidos para todas as épocas e culturas.

Muitas afirmações teológicas da Bíblia estão revestidas com uma roupagem cultural. Algumas ordens na Escritura estavam restritas a um período específico da história da salvação. Por isso, não podemos aplicar literalmente os textos bíblicos para nossa contemporaneidade. Por exemplo: lavar os pés uns dos outros (Jo 13.14); cumprimentar uns aos outros com beijo santo (Rm 16.16); ser circuncidado (Gn 17); pregar em dupla (Mc 6.7); as mulheres devem orar com um véu na cabeça (1Co 11.5); tomar a Ceia em um único cálice (Mc 14.23); etc. É muito óbvio que essas ordens não devem ser obedecidas literalmente, pois surgiram a partir de um corolário cultural.

Entretanto,essas ordens, ainda que revestidas com roupagens culturais, afirmam princípios eternos. Exemplos:

  1. Hoje não precisamos literalmente lavar os pés uns dos outros. Mas o princípio eterno ensinado por Jesus em Jo 13.14 permanece: precisamos ser servos uns dos outros.
  2. Não precisamos cumprimentar uns aos outros com beijo santo. Isso era próprio da cultura dos judeus (os homens cumprimentavam-se entre si com um beijo). Mas há um princípio eterno aqui: precisamos cumprimentar as pessoas, tratando-as de forma amigável, cordial e receptiva.

Isso se aplica também ao Antigo Testamento. Por exemplo, Levítico. Este livro está permeado de rituais e cerimonialismos que foram abolidos com o sacrifício expiatório de Cristo. Mesmo assim, Levítico apresenta um princípio eterno e imutável, a saber, o povo de Deus não pode se envolver com impurezas imorais ou com a religiosidade pagã do seu entorno, antes, precisa ser um povo santo e consagrado a Deus (Lc 11.45; 19.2; 20.7, 8, 26; cf. 1Pe 1.16). A principal afirmação teológica de Levítico (“sede santos”) é reiterada várias vezes no Novo Testamento, de várias formas (veja, por exemplo: 1Co 6.1-11).

Outro exemplo. A pena de morte como punição para aqueles que não guardavam o sábado certamente não pode mais ser aplicada para a comunidade da nova aliança (Êx 31.14). Entretanto, passagens como estas (Êx 31.14) ensinam um princípio eterno: aqueles que insistem em se rebelar contra o Senhor, em algum momento colherão o fruto de sua conduta (Gl 6.7; Hb 10.31).

Portanto, mesmo retirando os elementos culturais dos textos bíblicos, permanecem os princípios eternos afirmados por eles. Assim, jamais podemos dizer “essa passagem não tem mais nada a ver com a gente hoje”.

Ou seja, podemos remover o aparato cultural pertencente à época bíblica, mas não podemos jamais cancelar as afirmações teológicas, morais e éticas ensinadas na Palavra de Deus.

Por exemplo, o casamento conforme apresentado nas Escrituras, é uma instituição divina, monogâmica e heterossexual. Negar isso, é negar a Escritura (Gn 1.27; Gn 2.24). Negar isso é negar o próprio Jesus, pois o próprio Jesus afirma: “Não tendes lido que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher?” (Mt 19.4). Isso não é uma afirmação cultural. Isso é uma afirmação teológica que contém um princípio eterno, imutável e inegociável.

Assim também precisa compreendida a ordem da Bíblia às esposas, em Efésios 5.22: “sejam  submissas ao seu próprio marido”. Isso não é cultural. É uma afirmação teológica. Antes que os defensores do feminismo se zanguem, permita-me uma explicação: o texto não está legitimando o autoritarismo machista. O mesmo texto que ordena às mulheres serem submissas ao maridos, também ordena aos maridos amarem suas esposas com o mesmo amor que Cristo amou a Cristo (amor sacrificial, afetivo). Não é difícil a esposa ser submissa a um marido que tem o caráter de Cristo. A esposa não deve ser submissa a um marido autoritário, truculento, violento, soberbo, carnal. Antes, a esposa deve ser submissa a um marido amoroso, compassivo, manso, humilde, um homem que tem o caráter de Cristo. Portanto, ao apresentar a ordem “sejam submissas”, a Bíblia não está legitimando o machismo.

A sequência argumentativa de Efésios 5 não pode ser ignorada. Paulo está apresentando uma sequência de argumentos. Se invalidarmos um argumento dele, sob a alegação que é cultura, então invalidaremos todos os demais argumentos. Vejamos: se no v.23 ele declara que as esposas devem ser submissas aos maridos, no v.24 ele afirma: “Como, porém, a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo submissas ao seu marido” (Ef 4.24). A afirmação de que as mulheres devem ser submissas ao maridos está em paralelo com a afirmativa de que a igreja está sujeita a Cristo. Se a ordem “mulheres sejam submissas ao seu próprio marido” é cultural e não mais aplicável à nossa sociedade, então a afirmativa “a igreja está sujeita a Cristo” também é cultural e não se aplica mais à igreja contemporânea. Pois, se uma afirmação do texto não é mais aplicável para nós hoje, então porque as demais afirmações devem ser aplicáveis? E se queremos alterar as afirmações teológicas da Bíblia ou suavizá-las para a nossa época, então é melhor jogar a Bíblia fora.

Portanto, como intérpretes da Palavra, precisamos filtrar os elementos culturais da Bíblia. Contudo, não podemos cancelar suas afirmações teológicas, morais e éticas. 

O Evangelho é um convite para os pecadores (e todos somos!) se arrependerem dos seus pecados e aceitarem o dom gratuito da vida eterna. “Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1Tm 1.15). Jesus é aquele “que nos ama, e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados”(Ap 1.5). Um Cristo que não liberta dos pecados é um Cristo que não ama.

Neste dia (31.10) em que se comemora o aniversário da Reforma Protestante, reafirmemos um dos caros princípios dos reformadores: Sola Scriptura, somente as Escrituras são a Palavra de Deus e, portanto, a única regra infalível para a vida e doutrina.

Faço minhas as palavras de um dos precursores da Reforma, Martinho Lutero: “Minha consciência é cativa à Palavra de Deus.”

De minha parte, almejo sempre ser fiel às Escrituras. Oro para que o Senhor me conceda o privilégio de pregar fielmente a Palavra de Deus até o fim da minha vida.

Prezado(a) amigo(a), caso não concorde com as afirmativas expostas acima, caso tenha outra religião ou outros pensamentos sobre a Bíblia, faço votos para que isso não interfira em nossa amizade e não desconstrua o respeito mútuo entre nós. Espero continuar sendo seu amigo. Pessoas com pensamentos divergentes podem e devem se relacionar de forma pacífica e respeitosa. Que a discordância e a respeitabilidade caminhem juntas.