SALMO 22.1-21: O SOFRIMENTO DO MESSIAS
Mensagem pregada pelo Pr Luciano R. Peterlevitz na Igreja Batista Bela Vista, 01.03.2020.
Salmo 22.1-21:
1 Deus meu, Deus meu, por
que me desamparaste? por que estás afastado de me auxiliar, e das palavras do
meu bramido?
2 Deus meu, eu clamo de dia, porém
tu não me ouves; também de noite, mas não acho sossego.
3 Contudo tu és santo, entronizado
sobre os louvores de Israel.
4 Em ti confiaram nossos pais;
confiaram, e tu os livraste.
5 A ti clamaram, e foram salvos; em
ti confiaram, e não foram confundidos.
6 Mas eu sou verme, e não homem;
opróbrio dos homens e desprezado do povo.
7 Todos os que me vêem zombam de
mim, arreganham os beiços e meneiam a cabeça, dizendo:
8 Confiou no Senhor; que ele o
livre; que ele o salve, pois que nele tem prazer.
9 Mas tu és o que me tiraste da madre; o que me
preservaste, estando eu ainda aos seios de minha mãe.
10 Nos teus braços fui lançado
desde a madre; tu és o meu Deus desde o ventre de minha mãe.
11 Não te alongues de mim, pois a
angústia está perto, e não há quem acuda.
12 Muitos touros me cercam; fortes
touros de Basã me rodeiam.
13 Abrem contra mim sua boca, como
um leão que despedaça e que ruge.
14 Como água me derramei, e todos
os meus ossos se desconjuntaram; o meu coração é como cera, derreteu-se no meio
das minhas entranhas.
15 A minha força secou-se como um
caco e a língua se me pega ao paladar; tu me puseste no pó da morte.
16 Pois cães me rodeiam; um
ajuntamento de malfeitores me cerca; transpassaram-me as mãos e os pés. 17 Posso
contar todos os meus ossos. Eles me olham e ficam a mirar-me.
18 Repartem entre si as minhas
vestes, e sobre a minha túnica lançam sortes.
Introdução
Os cientistas ainda não inventaram alguma vacina contra o sofrimento. Certamente seria muito cômodo, se houvesse. Mas não há. O sofrimento é uma realidade inevitável na existência humana.
Jesus Cristo também experimentou a realidade da aflição. O salmo 22 descreve profeticamente o seu sofrimento. Esse texto tem sido chamado por alguns estudiosos de “salmo da crucificação”. Pois claramente descreve a ignominia de Cristo na cruz.
V.1a, que foram as primeiras das sete palavras de Cristo na cruz:
Por volta da hora nona, clamou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactâni? O que quer dizer: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?(Mt 27.46; veja Mr 15.34).
Há também outros aspectos do sofrimento messiânico descritos no salmo 22, que apesar de não serem citados nos Evangelhos, nitidamente aludem à angústia de Cristo na cruz: seus ossos desconjuntados/divididos (v.14), sua boca seca (v.15), suas mãos e pés perfurados (v.16).
Não é sem razão, portanto, que o salmo 22 seja o salmo mais citado nos Evangelhos.
Tema do Salmo 22: o sofrimento e a vitória do Messias.
Iniciamos hojeuma série de três mensagens no Salmo 22:
- O sofrimento do Messias: Sl 22.1-18
- O clamor do Messias: Sl 22.19-21
- O louvor do Messias: Sl 22.22-31
Hoje prego a primeira mensagem: O sofrimento do Messias.
O autor e o Messias
O título do salmo 22 alude ao seu autor: “Salmo de Davi”. Gerard van Groningen acredita que o salmo foi escrito por Davi quando fugia de Saul.[1]
É possível afirmar que o sofrimento de Davi descrito no salmo 22 apontava tipologicamente para o sofrimento do Messias. “Davi orou para ser livrado da experiência da morte; Cristo para ser livrado da morte real”.[2] A experiência do de Cristo foi muito mais avassaladora do que a experiência Davi. Isso porque Davi não foi morto pelos homens de Saul. Cristo, por sua vez, foi horrivelmente crucificado na cruz por seus algozes.
A estrutura
O salmo pode está estruturado em duas partes:
1ª parte: lamento, versos 1-21
2ª parte: louvor, versos 22-31
Na mensagem de hoje, estaremos a primeira parte desse Salmo, o lamento, particularmente os v.1-18, que descrevem o sofrimento do Messias.
O sofrimento espiritual: v.1-5
O sofrimento espiritual é o pior dos sofrimentos. É o que lemos no v.1a: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” Lemos aqui um grito de desespero. É o sentimento de que Deus nos abandonou. E não pode haver maior desespero do que aquele sentimento de ser desamparado por Deus. Pois se formos abandonados por amigos, por familiares, por irmãos na fé, ainda assim haverá esperança. Mas se formos abandonados por Deus, então estaremos destinados a total desesperança.
O que lemos aqui é um grito de abandono, mas que ainda considera Deus como “meu Deus” (hebr. ’eli). O pronome pessoal (“meu Deus”) demonstra a relação pessoal entre o salmista e o seu Deus. Mesmo sentindo-se abandonado por Deus, ele ainda considera Deus como o seu Deus. Ele “continua com fé ao apelar a Deus três vezes como Deus meu, mesmo enquanto é abandonado e não recebe resposta”[3].
É um grito que expressa a maior dor que pode existir, a dor espiritual. Mas também é um grito que demonstra a maior esperança que pode existir, pois é um grito para Deus como “meu Deus”.
O v.1b literalmente pode ser traduzido assim: “Distante da minha salvação estão as palavras do meu rugido.” O “rugir do leão”, aqui, expressa um grito de angústia.
O v.2 é um clamor de alguém que não é respondido por Deus.
Portanto, o sofredor do salmo 22 está completamente abandonado por Deus (v.1). E sua súplica não pode ser ouvida pelo Senhor (v.2).
Nos v.3-5, o sofredor afirma a santidade de Javé, e ao mesmo tempo, reconhece o livramente concedido por Javé aos antepassados. Três vezes é empregado o verbo “confiar” (hebr.batah). Os antepassados “confiaram” em Deus, e foram libertos. Os antigos hebreus foram salvos por Javé. Mas o sofredor aqui do Salmo 22 está complentamente abandonado!
Final do v.2: “e não há repouso para mim”. O termo dumiyah, “repouso”, apresenta o sentido de “calma”, “silêncio”, “espera tranquila”.
V.5: “e não se envergonharam”. ARA: “e não foram confundidos”. Seguimos aqui a BJ. A raiz verbal bux significa “sentir vergonha”, “ficar desapontado”.
O sofrimento emocional: 6-11
O sofrimento emocional aqui é resultado da zombaria.
V.6-8. O “eu” é enfático. Há um nítido contraste entre “tu és santo” (v.3) e “eu sou verme” (v.6). O sofredor não se considera humano. É “verme”. Trata-se de um bicho que come cadáveres (Is 14.11) ou que come a raiz de uma planta (Jn 4.7). O salmista afirmasua completa insignificância. Expressa sua dor emocional. É desprezado pelos homens.
Os zombadores diziam: “será que ele será salvo por Javé?”. Os “pais” foram salvos por Javé (v.4). Mas será que aflito do salmo 22 teria a mesma sorte?
V.7 e 8, as zombarias dos algozes de Davi é identificada com a zombaria daqueles que crucificaram Cristo:
O povo estava ali e a tudo observava. Também as autoridades zombavam e diziam: Salvou os outros; a si mesmo se salve, se é, de fato, o Cristo de Deus, o escolhido. (Lc 23.35; veja Mt 27.39-44; Mr 15.31-32;).
Mesmo em meio à dor emocional, Davi reconhecia que sua vida estava nas mãos de Deus, desde o seu nascimento: v.9-10.
Há muita gente sofrendo emocionalmente: medo, depressão, frustração, culpa, vergonha, solidão, desespero, decepção, desesperança. Muita gente sofre de baixo-estima e insegurança: “não sou ninguém”.
Nunca diga: “não sou ninguém”. Você foi criado à imagem e semelhança de Deus. Cristo derramou o seu sangue por você.
O sofrimento físico: v.12-18
Nos v.12-15 e v.16-18 o sofredor expressa sua dor física. Seus algozes são como “touros” (v.12), “como o leão que despedaça e ruge” (v.13); são como “cães” que avançam contra ele (v.16). Os v.14-15 são chocantes:
14 Como água me derramo,
e se separam todos os meus ossos;
meu coração está como a cera,
derretendo-se dentro de mim.
15 Seco está o meu paladar (vigor: ARA), como um caco de barro,
e a língua se me apega ao céu da boca;
e sobre o pó da morte coloca-me.
Nota-se a proximidade da morte. O final do v.14 afirma que o seu coração é como uma “cera” que se derrete. “Quando a cera derrete e a forma desaparece, assim o batimento do coração também desaparece até que não mais sentido; a perda do pulso sinaliza a morte”.[4] Em decorrência de seu sofrimento físico, sua boca está seca, e sua língua gruta no céu de sua boca (v.15). Ao que parece, o sofredor não somente experiementa a proximidade da morte, mas a própria morte, como afirma o final do v.15: “e sobre o pó da morte colocava-me”. O v.16 afirma que suas mãos e pés foram perfurados, e o v.18 diz que suas vestes foram repartidas entre aqueles que o matavam. Nesse sentido, o texto não se aplica a Davi, mas somente a Cristo. Davi experimentou a proximidade da morte. Cristo experimentou a própria morte.
V.18, a partilha de suas vestes:
Os soldados, pois, quando crucificaram Jesus, tomaram-lhe as vestes e fizeram quatro partes, para cada soldado uma parte; e pegaram também a túnica. A túnica, porém, era sem costura, toda tecida de alto a baixo.Disseram, pois, uns aos outros: Não a rasguemos, mas lancemos sortes sobre ela para ver a quem caberá — para se cumprir a Escritura: Repartiram entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica lançaram sortes. Assim, pois, o fizeram os soldados.(Jo 19.23,24; veja que no v.24 há uma citação do Salmo 22.18).
Quem nunca teve alguma dor física? Uma dor de dente ou de cabeça; alguma enfermidade; algum ferimento; alguma fratura… Nesses momentos clamamos: “Deus meu, Deus meu”.
Conclusão
Lendo o Salmo 22, salta aos nossos olhos a identificação da experiência dolorosa de Davi com o sofrimento de Cristo. De fato o sofrimento de Jesus na cruz não somente foi vigário. Também foi pedagógico e exemplar.[5] Ou seja, Cristo não somente morreu por nossos pecados, mas também sofreu e morreu para nos ensinar que o sofrimento é uma experiência inevitável na vivência humana.
O que aprendemos com o sofrimento de Cristo
é que, mesmo na angústia intensa, o Senhor sempre renovará a esperança daqueles
Nele confiam. Davi que o diga!
[1]Gerard van Groningen, Revelação messiânica no Antigo Testamento,Campinas, Luz Para o Caminho, 1995, p. 323.
[2] Bruce K Waltke; James M. Houston, Os Salmos como adoração cristã, São Paulo, Shedd Publicações, 2015, p. 438.
[3] John Stott, Salmosfavoritos, p. 28.
[4] Bruce K Waltke; James M. Houston, Os Salmos como adoração cristã, p. 429.
[5]Isaltino Gomes Coelho Filho,Teologia dos Salmos – princípios para hoje e sempre, Rio de Janeiro, JUERP, 2000, p. 113.