A IDENTIDADE DO MESSIAS NO SALMO 2 – e identity of the Messiah on Psalm 2

Postado em 25 de outubro de 2018 por

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Dr. Luciano Peterlevitz1 RESUMO

O maxiah (“Messias”) apresentado no Salmo 2 não pode ser identificado com o monarca davídico. Pois o Rei apresentado pelo salmista é uma figura sobre-humana, identificada com o próprio Deus, e, além disto, o seu reinado nitidamente possui caráter universal e não pode ser equiparado com o reinado político regional de Davi. O salmista contempla o futuro Messias, e, desse modo, o texto é prenunciativo e profético. Portanto, a leitura messiânica proposta pelo cristianismo não é fruto de reinterpretações supostamente inventadas pelos autores neotestamentários, mas é reclamada pelo próprio texto hebraico do Salmo 2.

Palavras-chaves: Messias. Reinado. Davi. Tipologia. Cristologia.

ABSTRACT

 e maxiah (“Messiah”) presented on Psalm 2 cannot be identified with the davidic monarch, because the King presented by the psalmist is a superhuman figure, identified with God himself. Besides, his reign clearly has a universal character so, it cannot be compared with David’s regional political reign.  e psalmist sees the Messiah’s future and, in this way, the text is predictive and prophetic.  erefore, the messianic perspective of this text proposed by Christianity is not due to reinterpretations allegelly invented by the New Testament authors, but it is claimed by the own Hebrew text of Psalm 2. Key words: Messiah. Reign. David. Typology. Christology. 1 O autor é Bacharel em Teologia (FTBC e FATEO/UMESP), Mestre em Ciências da Religião (Universidade Metodista de São Paulo) e Doutor em Ciências da Religião (Universidade Metodista de São Paulo). Coordenador Acadêmico da Faculdade Teológica Batista de Campinas, onde também leciona Hebraico e Antigo Testamento desde 2005. Articulista da Revista Teologia Brasileira (Edições Vida Nova). Pastor auxiliar na PIB de Nova Odessa/SP. E-mail: coordenador@teologicadecampinas.com.br

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INTRODUÇÃO

Os cristãos que leem o Salmo 2 apressadamente aplicam esse texto a Cristo. E essa interpretação cristológica não é fruto de uma leitura despercebida e distorcida do texto, pois os crentes do Novo Testamento também identificavam o reinado do maxiah (“Messias”) referido no Salmo 2 com o reinado do Senhor Jesus (At 4.25-26; 13.33; cf. Hb 1.5; 5.5). A interpretação cristã do Salmo 2 entende que o mundo está em rebelião contra Deus e contra o seu Messias. Mas os rebeldes precisam se submeter ao Filho, porque Ele está revestido com o poder e a autoridade de Deus, e um dia despedaçará com ira aqueles que o resistirem. “A mensagem principal do salmo 2 é simplesmente esta: o Senhor reina”.2

Conquanto os autores do Novo Testamento aplicassem sem reservas o Salmo 2 a Cristo, não há concordância entre os teólogos a respeito da identificação do Messias nesse texto bíblico. À vista disso, o objetivo do presente artigo é suscitar o debate a respeito da interpretação messiânica do Salmo 2. No primeiro momento, o artigo analisa algumas propostas hermenêuticas, destacando a interpretação tipológica, que se propõe a harmonizar a suposta aplicação original do Salmo 2 ao reinado político de Davi com as aplicações que os autores neotestamentários conferiram ao texto com o advento da nova aliança. No segundo momento, o artigo analisa a forma e o contexto vivencial do texto.

2 FUTATO, Mark D. Interpretação dos Salmos: um prá co e indispensável

manual de exegese. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 60.

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E no terceiro momento, propõe-se uma análise exegética, indagando a validade da interpretação tipológica do Salmo 2, contudo sem a intenção de invalidar a tipologia em outros textos veterotestamentários.

A questão principal a ser respondida no presente artigo é a seguinte: o maxiah apresentado no Salmo 2 seria Davi, como representante tipológico das promessas messiânicas, ou descreve diretamente o Messias, sem a mediação histórica do reinado davídico? Atrelada a essa questão, outra também será respondida: o sentido messiânico no salmo 2 depende dos textos neotestamentários que fazem referência cristológica a esse salmo, ou é possível perceber o sentido messiânico no próprio Salmo sem precisar recorrer aos autores do Novo Testamento?

  1. A QUESTÃO HERMENÊUTICA

De acordo com a perspectiva neotestamentária, o Salmo 2 descreve o reinado imponente do Messias, o Filho de Deus. Para os autores do Novo Testamento, as palavras do Salmo foram escritas por Davi e inspiradas pelo Espírito Santo (At 4.25). O maxiah, “Ungido” (Sl 2.2), é Cristo, que, através de sua morte e ressurreição, cumpriu as profecias do Antigo Testamento (At 13.33; cf. Hb 1.5; 5.5).

No entanto, em 1870 William Binnie defendeu que algumas partes dos salmos messiânicos se referem a Davi e

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não a Cristo.3 Isso porque o “messias”, em outros textos do Antigo Testamento, claramente é uma referência a Davi (Sl 18.50; 89.20). E, depois da afirmação de Binnie, o Salmo 2 foi desconectado de Cristo e reduzido a mera tentativa de suportar e amparar ideologicamente o reinado político de Davi. Essa desconexão do Salmo 2 com Cristo parece estar alinhada a um notável problema hermenêutico, qual seja, a aparente descontinuidade entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento, especificamente no âmbito do conceito messiânico. Em nossa contemporaneidade, muitos comentaristas e teológos, descomprometidos com a veracidade e fidedignidade das Escrituras, acreditam que os autores do Novo Testamento distorceram o sentido dos textos veterotestamentários. Longenecker afirma que o autor de Atos, ao juntar 2Samuel 7.14 com o Salmo 2.7 em At 13.33, apresenta o referencial hermenêutico do gezarah shavah4 (analogia).5 Ou seja, a expressão “meu filho” (Sl 2.7) estaria analogicamente relacionada com 2Samuel 7.14, e ambas passagens foram utilizadas pelo autor de Atos para dar suporte às reivindicações cristãs da autoridade messiânica de Jesus. De acordo com Longenecker, esse seria apenas um exemplo das

3 BINNIE, William.  e Psalms:  e History, Teaching and Use. London: T. Nelson and Sons, 1870, p. 187, citado em http://feedingonchrist.com/ the-songs-of-the-son-seeing-christ-in-the-psalms/. Acessado em 07.04.2016. 4 Gezarah shavah é uma expressão designativa do princípio hermenêutico rabínico que interpreta as relações entre duas passagens bíblicas com estrutura literária e vocabulário comuns, especificamente no âmbito das regulamentações da lei mosaica. Alguns hermenêutas atuais valem-se dessa expressão para aludir a analogia entre duas passagens bíblicas. 5 LONGENECKER, Richard N. Biblical Exegesis in the Apostolic Period. 2. ed. Grand Rapids/Vancouver: Eerdmans/Regent College, 1999, p. 81-82.

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muitas interpretações midráshicas encontradas no Novo Testamento.6 Curiosamente, Longenecker reconhece que a literatura rabínica propunha uma interpretação messiânica para o salmo 2.7 Quer dizer, embora os judeus não aplicassem o texto a Jesus, por rejeitarem as alegações messiânicas dos cristãos, eles, à semelhança dos cristãos, identificavam o maxiah do Sl 2.2 com o futuro Messias esperado por eles.8 Os autores neotestamentários transportaram para a pessoa de Jesus as afirmações que originalmente eram aplicadas aos monarcas de Jerusalém.9 Os teólogos reformados, por sua vez, são quase unânimes na afirmativa de que o maxiah no Salmo 2 refere-se a Davi e seus descendentes como representantes

6 LONGENECKER, 1999, p. 81-87. 7 LONGENECKER, 1999, p. 84-84. 8 Peter Enns, seguindo a proposta de Longenecker, afirma que os autores do Novo Testamento estavam comprometidos com a leitura cristológica dos textos veterotestamentários, e não tinham preocupação com o contexto original desses textos. No entender de Enns, os autores do Novo Testamento, sob o pressuposto fundamental de que todas as passagens do Antigo Testamento apontam para Cristo, encontraram Cristo em passagens veterotestamentárias que originalmente nem sequer eram messiânicas. ENNS, P. Inspiration and Incarnation: Evangelicals and the Problem of the Old Testament. Grand Rapids: Baker Academic, 2005, p. 103-156. Contudo, veja BEALE, G. K. Manual do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento: Exegese e interpretação. São Paulo: Vida Nova, 2013; O uso do Antigo Testamento no Novo Testamento e suas implicações. São Paulo: Vida Nova, 2013. Veja também BEALE, G. K., Carson, D.A. Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2014. 9 MONLOUBOU, L., “Os Salmos”. In: MONLOUBOU, L. et. al. Os salmos e os outros escritos. São Paulo: Paulus, 1996, p. 98 (Biblioteca de ciências bíblicas).

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tipológicos do reinado messiânico.10 Davi foi ungido com azeite e capacitado pelo Espírito de Javé para reinar sobre Israel (1Sm 16.13; cf. Sl 18.50; 89.20). De acordo com a leitura tipológica11, o Salmo 2 originalmente era aplicado aos reis descendentes de Davi que governaram em Jerusalém. Portanto, seria um hino que identificava o reinado político de Davi com o reinado de Javé. Isso porque Javé prometera para Davi um reino eterno: “Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre diante de ti; teu trono será estabelecido para sempre” (2Sm 7.16; cf. Sl 89.3-4). Assim, cada rei descendente de Davi representava Javé sobre a terra, e constituía-se um tipo do grande Rei que viria.12 O Novo Testamento descreve Cristo como descendente de Davi, sobre quem se cumprem todas as promessas divinas outrora feitas à casa de Davi (Mt 1.1; Ap 22.16). Ele é o “filho de Davi” por excelência. Então, na perspectiva tipológica, o Salmo 2 reitera o compromisso do Senhor com a casa de Davi, e ao mesmo tempo lança luzes para o advento do reino

10 GRONINGEN, Gerard van. Revelação messiânica no Antigo Testamento. Campinas: Luz Para o Caminho, 1995, p. 307; ROSS, Allen P. A Commentary on the Psalms: Volume 1 (1-41). Grand Rapids: Kregel Publications, 2011, p. 204; FUTATO, 2011, p. 62; MARCHALL, I. Howard, “Atos”. In: BEALE, G. K.; CARSON, D. A Carson. Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 730, 731; CARSON, D. A. Jesus, o Filho de Deus: o título cristológico muitas vezes negligenciado, às vezes mal compreendido e atualmente questionado. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 48, 50. 11 Veja a definição de tipologia e o debate acerca de sua aplicabilidade, em BEALE, 2013 [Manual do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento], p. 36-52. 12 COELHO FILHO, Isaltino Gomes. Teologia dos Salmos: princípios

para hoje e sempre. Rio de Janeiro: JUERP, 2000, p. 99-102.

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messiânico na nova aliança. Portanto, no contexto geral do cânon bíblico, o Salmo 2 deve ser aplicado a Cristo, mesmo que originalmente descrevia o reinado político de Davi. Na perspectiva tipológica, o Messias nesse Salmo é Davi, que é um tipo do Messias escatológico, pois no próprio texto é possível perceber que o reino local de Davi é movido para um nível cosmológico universal.13

De fato, a leitura tipológica é muito importante para a compreensão do relacionamento entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento. Na antiga aliança, o governo de Davi apontava para o futuro reinado do Messias. Por isso, muitas profecias veterotestamentárias descrevem o Messias como um novo Davi (cf. Jr 23.5; 33.15; Ez 34.23-24).

No entanto, ao que diz respeito à interpretação do Salmo 2, o presente artigo levanta a suspeita de que as vozes de Martinho Lutero e John Owen talvez precisem ser ouvidas. De acordo com Lutero, Davi, no Salmo 2, é um profeta que antevê o reinado do Messias.14 Owen, antigo pregador puritano do século 17, afirmava que o Salmo 2 não diz respeito a Davi, mas aplica-se diretamente

13 DAVIDSON, Richard M. “Did Matthew ‘Twist’ the Scriptures? A Case Study in the New Testament Use of ohe Old Testament”. In: Petersen, Paul, Cole, Ross. Hermeneutics, Intertextuality and the Contemporary Meaning of Scripture. Adeleide: Avondale Academic Press, 2014, p. 63. 14 PAK, G. Sujin. Judaizing Calvin: Sixteenth-Century Debates over the

Messianic Psalms. New York: Oxford University Press, 2010, p. 33.

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a Jesus.15 Desse modo, mesmo que a leitura tipológica admita o caráter prenunciativo ou profético das narrativas vetorestamentárias16, e, portanto, tipologia e profecia não sejam excludentes, contudo, é preciso indagar se a tipologia é adequada para o caso específico do Salmo 2, considerando-se os aspectos exegéticos desse texto bíblico.

  1. A FORMA E O LUGAR VIVENCIAL

Praticamente todos os estudiosos do Livro dos Salmos são unânimes ao afirmarem as relações entre os Salmos e a liturgia do povo da antiga aliança; ou seja, quase todos os Salmos foram escritos para serem recitados nas grandes celebrações cúlticas do antigo Israel.17 E, à semelhança dos antigos hebreus, a igreja, desde seus primórdios, cantava os salmos. 18 O livro dos Salmos ocupava o lugar de proeminência na “Bíblia da Igreja Primitiva”, e o Salmo 2.7, citado em At 13.33 (cf. Mc 1.11; 9.7), “era usado para se esclarecer o tema capital da messianidade de Jesus”.19

15 “ ere is no cogent reason why we should acknowledge David and

his kingdom to be at all intended in this psalm.  e apostles, we see, apply it to the Lord Christ without any mention of David, and that four several times; twice in the Acts, and twice in this epistle.” OWEN, John . Exposition of the Epistle to the Hebrews. Boston: Samuel T. Armstrong, 1812, p. 66-67. 16 BEALE, 2013 [Manual do uso do Antigo Testamento no Novo

Testamento], p. 36. 17 MONLOUBOU, 1996, p. 69-72. 18 DOCKERY, David S., “ e Psalms and  eir Influence on Christian Worship”. In: BATEMAN, Herbert W.; Sandy, D Brent (eds.). Interpreting the Psalms for Teaching and Preaching. Saint Louis: Chalice Press, 2010, p. 233-240. 19 MONLOUBOU, 1996, p. 90.

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A relação entre os salmos e a liturgia pode ser visualizada na análise dos “salmos de entronização”, que no antigo Israel celebravam o reinado de Javé. Para muitos intérpretes, o Salmo 2 formalmente pode ser classificado entre esses “salmos de entronização”, e estaria localizado especificamente no contexto da coroação dos reis davídicos em Jerusalém.

A leitura do Salmo 2 como uma cerimônia de coroação pode ser observada na análise de Milton Schwantes:

No Salmo 2, pronunciam-se diferentes vozes. No v.3, os povos tomam a palavra. Fala divina é o v.6. O rei se manifesta do v.7 até o v.9. Neles, cita um oráculo divino. Esta alternância de vozes novamente faz suspeitar que estamos diante de uma liturgia, na qual a voz de um oficiante é, por vezes, interrompida por outras vozes. Este oficiante não parece ser o rei. Antes terá falado um profeta do âmbito da corte real.20 Para Schwantes, “o v.7 parece aludir a um momento específico do ritual de entronização: à entrada do documento de legitimação da posse”.21 O termo hoq, “decreto”, seria o protocolo real, um documento no qual Javé declara que tem adotado o rei “como filho e tem confiando a ele o domínio sobre todo o mundo”.22

20 SCHWANTES, Milton. “O rei-messias em Jerusalém: Observações sobre o messianismo davídico nos Salmos 2 e 110”. In: Revista Caminhando, v.13, n. 21, jan-jun 2008, p. 23. 21 SCHWANTES, 2008, p. 23. 22 RAD, Gerhard von. “El ritual real judio”. In: Estudios sobre el Antiguo Testamento. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1976, p. 194 (Biblioteca de Estudios Bíblicos).

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Para Allan P. Ross, a coroação do novo rei representava um momento de perigo para o povo de Deus, porque as nações vizinhas de Judá poderiam ver na transição de governo um momento oportuno para invadir as fronteiras de Judá e destruir a cidade de Jerusalém.23 Weiser explica: Por isso muitas vezes a primeira e mais urgente tarefa do novo soberano, após sua ascensão ao trono, era sufocar a rebelião de príncipes e povos submetidos, para consolidar o poder do império. Esse quadro conhecido e muitas vezes repetido na história constitui o pano de fundo do nosso salmo, que parece ter sido composto para a festa da entronização do rei e usado no culto.24 Nessa perspectiva, o Salmo 2 apresentaria o ritual de coração do novo rei, declarando o poder do reinado de Deus através do reinado da dinastia davídica, e, caso as nações inimigas se congregassem contra o rei de Judá (v.1-3), elas seriam totalmente abatidas por Javé (v.5). Historicamente este salmo provavelmente era cantado pelos cantores do templo de Jerusalém com vistas a encorajar os reis davídicos nas batalhas, já que nessa canção Javé assegura que o ungido reinante sobre Sião sempre será vitorioso diante dos exércitos inimigos.25

No entanto, James Luther Mays apresenta uma proposta digna de reflexão: se o Salmo 2 for lido com um anúncio profético a respeito do futuro descendente de

23 ROSS, 2011, p. 200. 24 WEISER, Artur. Os Salmos. São Paulo: Paulus, 1994, p.75 (Coleção

grande comentário bíblico). 25 WALTKE, Bruce K. et. al.  e Psalms as Christian Worship: An Historical Commentary. Grand Rapids: Eerdmans Publishing, 2010, p. 162.

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Davi, então o texto pode ser entendido como uma promessa escatológica, e não como um ritual de entronização dos reis judaítas.26 Talvez Mays tenha sido radical demais em sua afirmação, pois não precisamos negar o caráter litúrgico do Salmo 2 para afirmar seu caráter profético e preditivo. É possível que o Sitz im Leben do Salmo 2 seja uma cerimônia de coroação, conforme já foi constatado por vários estudiosos. Contudo, será que nessa cerimônia os antigos hebreus não entoavam a futura vinda do Messias? Só uma análise exegética pode responder essa questão. É o que nos propomos a fazer agora.

  1. ANÁLISE EXEGÉTICA

O Salmo 2 está estruturado em quatro estrofes: 1a estrofe: v.1-3. A rebelião das nações contra Javé e seu Messias – A voz dos rebeldes

2a estrofe: v.4-6. O juízo de Javé contra as nações – A voz de Deus

3a estrofe: v.7-9. A confirmação do reinado do Messias – A voz do Messias

4a estrofe: v.10-12. Uma palavra de exortação A análise de cada uma dessas estrofes elucidará a identidade do Messias nesse salmo.

1a estrofe: v.1-3. A rebelião das nações contra Javé e seu Messias – A voz dos rebeldes

26 MAYS, James Luther. Psalms: Interpretation, a Bible Commentary for Teaching and Preaching. Louisville: Westminster John Knox Press, 2011, p. 49.

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1 Por que conspiram27 as nações, e os povos meditam28 coisas vãs?

2 Os reis da terra se posicionam29 e os príncipes30 se reúnem31 juntos contra Javé e contra o seu Messias (dizendo):

3 Rompamos32 os seus laços e joguemos fora33 de nós as suas algemas.

No v.1, leem-se dois termos sinônimos: goyim “nações”, e le’ummim “povos” (Gn 25.23; Sl 44.2[3]). O termo le’om “povo” procede de uma raiz árabe (la’ama, “reunir em assembleia”), e significa “estar junto”, e sugere a totalidade de um povo.34 Aqui no Salmo 2, os le’ummim/“povos” estão reunidos para se rebelarem contra Javé e seu Ungido. O verbo ragax (qal perfeito) “conspirar”, significa “enfurecer”, “tramar”. A forma verbal (perfeito) sugere uma ação concluída. Na segunda frase, o verbo hagah qal “meditar” apresenta-se no imperfeito.

27 ragax qal perfeito “conspirar”. 28 hagah qal imperfeito “meditar”. 29 yasab hitpael imperfeito “posicionar”. 30 razan qal particípio “ser pesado”, “ser judicioso”, “ser imponente”:

WHITE, William.

!zr

(rāzan). In: HARRIS, R, Laird; ARCHER, Jr, Gleason L.; WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, verbete 2142, p.1415; “dignitário”: KIRST, Nelson et. al. Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português. 16.ed. São Leopoldo; Petrópolis: Sinodal; Vozes, 2003, p. 225. 31 yasad nifal perfeito “reunir (em conclave)”. 32 nataq piel imperfeito “romper”, “quebrar” 33 xalah hifil imperfeito “jogar fora” 34 GRONINGEN, Gerard Van. ~al (le’ōm). In: HARRIS, R, Laird; ARCHER, Jr, Gleason L.; WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, verbete 1069a, p. 764.

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Juntando as duas frases, nota-se que a ação das “nações” está concluída (ragax perfeito), mas ainda persiste (hagah imperfeito). O sentido das duas frases é este: eles estão se levantando para a rebelião. A ameaça das “nações/povos” constitui-se um plano de conspiração contra o reinado de Javé.35

Na segunda frase do v.1, a raiz verbal hagah (qal imperfeito) “meditar” é a mesma empregada no Sl 1.2, onde se diz que homem bem-aventurado medita na “instrução/lei” do Senhor. Aqui no Sl 2.1, no entanto, o sentido do verbo é “meditar/conspirar” para a rebelião. Se no Sl 1.2 o objeto do verbo é a torah “instrução” de Javé, aqui, no Sl 2.1, o objeto é o riq “coisas vãs”, termo que no Antigo Testamento refere-se àquilo que é “vazio” ou “inútil” (Is 30.7). No Sl 1.2, o homem bem-aventurado ocupa o seu coração com a torah de Javé, que é mais valiosa do que qualquer riqueza que o homem pode obter (Sl 19.10). No Sl 2.1, o coração das nações rebeldes se ocupa com seus próprios planos rebeldes que serão frustrados pela soberania de Deus. O homem bem-aventurado ocupa-se com a vontade de Deus. As nações ocupam-se em rebelar-se contra a vontade de Deus.

É interessante notar que o v.1 inicia-se com partícula interrogativa lamah “por quê?”. O salmista entoa uma pergunta (“porque” as “nações” e os “povos” estão se rebelando contra Javé?), que, longe de transmitir desespero ou preocupação frente ao levante dos povos, expressa a surpresa pela presunção dos povos, pois esses

35 ROSS, 2011, p. 202.

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ignorantemente acham que poderão prevalecer contra a soberania de Javé.36 É como se o salmista estivesse dizendo para as nações e povos: “Levantando-se contra Javé, vocês estão agindo como loucos! Será que vocês não percebem que a rebelião de vocês será abatida pelo Poderoso Deus?”.

O v.2 apresenta duas frases inter-relacionadas:

Os reis da terra se posicionam e os príncipes se reúnem juntos. Descrevem-se as ações dos “reis” e dos “príncipes” “contra Javé e contra o seu Messias”. A primeira frase alude ao “posicionar” (yasab hitpael imperfeito) dos “reis”. A segunda refere-se ao “reunir” (yasad nifal perfeito, “reunir em conclave”) dos “príncipes”. Na primeira frase, o campo de ação de ação dos “reis” é a ’eres “terra”. O domínio humano restringe-se à esfera terrena. Em contrapartida, o v.4 descreve Javé como “aquele que habita nos céus”. O domínio de Deus está “nos céus”, acima da esfera terrena, e isso necessariamente pressupõe que tudo o que está na “terra” está submetido aos “céus”. No entanto, os “reis da terra” não se submetem Àquele “que habita nos céus”, antes, se levantam “contra Javé e contra o seu Messias”. Portanto, o v.2 apresenta o domínio humano se levantando contra o domínio divino.

O termo “príncipes” é a tradução de razan (qal particípio) “ser pesado”, “ser judicioso”, “ser imponente”.37 36 KRAUS, Hans Joachim. Psalms 1-59: a commentary. Minneapolis:

Augsburg, 1988, p. 127.

37 WHITE, William.

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(rāzan). In: HARRIS, R, Laird; ARCHER, Jr, Gleason L.; WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, verbete 2142, p. 1415.

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É uma referência ao razon “dignitário”38, aquele que está ao lado do “rei” (Pv 14.28; cf. Jz 5.3; Hc 1.10). No mundo antigo, esses “príncipes” se abrigam em fortalezas (cidades fortificadas) e confiavam em seu arsenal militar, mas, de acordo com o Salmo 2.2, seriam humilhados pela poderosa ação de Javé (cf. Hc 1.10).

O final do v.2 apresenta a palavra maxiah “messias”, “ungido”. Trata-se de um adjetivo passivo, “e se refere a indivíduos[…] que foram ungidos com óleo como um símbolo, entre outras coisas, do derramar o Espírito Santo para capacitá-los para sua vocação.”39 O termo é aplicado a sacerdotes (Lv 4.3), reis (1Sm 2.10) e profetas (1Rs 19.16). Mas, aqui no Salmo 2, o termo descreve alguém com poderes que transcendem a regionalidade da Palestina.

De acordo com Kraus40 e Weiser41, o Salmo 2 não descreve uma ação de reis locais (vizinhos de Judá) contra o reinado de Davi, mas um levante mundial (“reis da terra”) contra o reinado do maxiah. Assim, se o maxiah deve ser identificado com o rei davídico, então surge um problema para a interpretação desse salmo. Isso porque o reinado de Davi esteve circunscrito à pequena faixa de terra envolvendo o território de Israel e o território de alguns países vizinhos (como Edom e Moabe), e o salmista seria bastante presunçoso se estivesse dizendo que os “reis da terra” estavam preocupados com o reino local de Davi.

38 KIRST, Nelson et. al. Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-

Português. 16.ed. São Leopoldo; Petrópolis: Sinodal; Vozes, 2003, p. 225. 39 FUTATO, 2011, p. 62 40 KRAUS, 1988, p. 127. 41 WEISER, 1994, p. 75.

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A opinião de muitos comentaristas atuais, diante dessa questão, pode ser resumida nas palavras de Weiser:

Em vão procuraremos uma situação da história israelítico-judaica em que o domínio mundial de um rei israelita, aqui sugerido, tivesse sido uma realidade.42 Também não se pode supor que o autor, num exagero desmedido e injustificado, chame os príncipes dos pequenos reinos vizinhos temporariamente submetidos por Israel, de “reis da terra” ou “juízes da terra” (v.10). Dificilmente podemos encontrar outra explicação para o horizonte mundial em que coloca as modestas dimensões do reino israelita, que não seja a imitação de um modelo estrangeiro, isto é, o estilo das cortes dos impérios do antigo Oriente e seu culto real.43 A opinião de Weiser é esclarecida por Hans- Joaquim Kraus, para quem o Salmo 2 apresenta um tipo de linguagem proveniente da corte que convencionalmente descrevia os reinos locais com certa exuberância e exagero, à semelhança dos relatos de outros reinos do Antigo Oriente.44 Kraus admite que, enquanto no Antigo Oriente os reis eram divinizados, em Judá reconhecia-se que Javé era o único Adonay (Senhor) sobre toda a terra, e os reis davídicos estavam investidos com uma autoridade conferida por Javé.

Milton Schwantes, um dos maiores estudiosos de Antigo Testamento no contexto latino-americano,

42 Weiser está questionando as opiniões de Alt e Kraus. Veja KRAUS, 1988,

  1. 127. 43 WEISER, 1994, p. 75. 44 KRAUS, 1988, p. 127-128.

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defende que, diferentemente do reinado de Davi, o âmbito do reinado descrito aqui no Salmo 2 não é local, mas mundial.45 Schwantes explica:

Na maior parte da trajetória histórica, estes estados de Judá e Israel não passaram de pequenos conjuntos políticos que detinham controle sobre um setor de terras montanhosas, à margem das rotas comerciais internacionalmente relevantes. As dimensões expostas, neste Salmo 2, vão além do que era possível para os reis jerosalemitas. Extrapolam. Transcendem.46 A afirmativa de Schwantes poderá ser evidenciada nos versos seguintes. Por hora, analisemos o v.3. Esse verso pressupõe a predominância do reinado do Messias. É a fala dos “reis da terra” e dos “príncipes”. Eles querem se libertar do “laço” (moserah “faixa”) e da “algema” (‘abod “corda”). Apresenta-se assim a perspectiva das nações que planejam a rebelião contra o reinado de Javé. Para os rebeldes, estar sob o domínio do Messias é o mesmo que escravidão. É necessário desvincular-se do domínio messiânico. Pelo v.4, nota-se que eles não estão se rebelando contra um reinado político, como o de Davi, mas contra o próprio Deus. Na perspectiva desses líderes rebeldes, a liberdade só é possível àquele que não está sujeito a Javé. Uma observação nesse ponto é pertinente: essas nações retratam muito bem o coração rebelde do homem pós- moderno, que enxerga qualquer discurso religioso como tentativa de imposição intolerante e opressora; esse

45 SCHWANTES, 2008, p. 25. 46 SCHWANTES, 2008, p. 25.

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soberbo conceito defende equivocadamente que uma vida de submissão ao senhorio de Deus dever ser rejeitada em nome da “liberdade” humana.

Fica claro, de qualquer modo, que as nações retratadas nos v.1-3 já estão dominadas. A rebelião contra a soberania de Javé é só plano. Não é uma realidade. Por mais que elas não aceitem o domínio de Javé, elas estão, contudo, debaixo do reinado divino.

A igreja perseguida de Atos identificou “os reis da terra” e os “príncipes” do Salmo 2.2 com “Herodes e Pôncio Pilatos, com os gentios e gente de Israel”, que se levantaram contra o “santo Servo Jesus” (At 4.25-30). Os líderes políticos e religiosos que mataram o Senhor estão entre aqueles “povos” e “nações” que se levantam “contra Javé e contra o seu Messias”. Mas, muito antes disto, ao longo da história da salvação descrita no Antigo Testamento, vários povos e nações se levantaram contra o Senhor e contra o seu plano de trazer salvação mundo através do seu Messias. É possível citar os egípcios, os filisteus, os assírios, os babilônicos, e, no período da nova aliança, os romanos. E em todo o período da história da igreja, muitos foram os impérios organizados que almejaram desfazer os planos redentores do Senhor através de sua igreja. Todos esses integravam o grupo de poderes humanos malignos e corruptos descritos no Salmo 2.1- 3. E todos esses foram desbaratados e julgados pele Deus soberano. Por isso, quando perseguida por poderes opressores, a igreja deve erguer os olhos ao Deus do céu, e repetir a mesma oração dos irmãos da igreja primitiva:

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…porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram; agora, Senhor, olha para as suas ameaças e concede aos teus servos que anunciem com toda a intrepidez a tua palavra, enquanto estendes a mão para fazer curas, sinais e prodígios por intermédio do nome do teu santo Servo Jesus (At 4.27-30).

2a estrofe: v.4-6. O juízo de Javé contra as nações – A voz de Deus

4 Aquele que habita47 nos céus ri;

Adonai zomba48 deles. 5 Então falará49 com eles em sua ira, e em seu furor os confundirá50. 6 E eu constituí51 o meu Rei sobre Sião, o meu monte santo. O v.4 descreve o riso de Deus frente ao presunçoso plano das nações rebeldes Na primeira frase (“aquele que habita nos céus ri”), é importante observar a forma verbal yoxeb, qal particípio proveniente da raiz yaxab “habitar”. Os estudos de Gottwald evidenciaram que a raiz yxb “assentar” (esse é o sentido literal do verbo) evoluiu para

47 yoxeb qal particípio de yaxab “habitar”, “assentar”. 48 la‘aq qal imperfeito “zombar”, “escarnecer”. 49 dabar piel imperfeito “falar” 50 bahal piel imperfeito “confundir”. 51 nasak qal perfeito “constituir”, literalmente “derramar”.

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particípio idiomático “aquele se senta no trono/governar”, e em vários textos do Antigo Testamento apresenta-se como referência aos poderes políticos estabelecidos pelas monarquias (Is 10.13; Jr 12.4; 25.9, 29; etc).52 Aqui no Sl 2.4, por sua vez, o verbo tem Adonai como sujeito. Essa frase aponta à transcendência de Javé (aquele que transcende a organização humana sobre a “terra”)53, e destaca sua soberania e o seu poder. É importante notar o nome divino na segunda frase: ’adonay “Senhor”. Esse nome indica que Javé é o supremo ’adonay/“Senhor”, e todos os outros senhores (líderes humanos) são seus servos.54 Por isso, quando os povos se levantam contra a soberania de Deus, ele simplesmente ri e zomba deles (cf. Sl 37.13; 59.8). O riso do Adonai revela sua majestade. A vitória divina já está garantida. A conspiração não desperta nenhum temor em Adonai. Só riso!

No entanto, no v.5, o riso de Adonai imediatamente é substituído por sua “ira” (’ap). Esse v.5 inicia-se com partícula adverbial ’az, “então”, transmitindo a ideia de que a ação do v.4 é imediatamente substituída por outra, descrita nesse v.5. O verbo hebraico dabar “falar”, no grau em que se encontra (piel) e no contexto da frase (be’appo “em sua ira”) transmite o sentido de “ameaçar”. O verbo da frase seguinte, bahal (piel imperfeito) “confundir”, pode ser traduzido como “espantar” (Is 13.8). O “furor”

52 GOTTWALD, Normal K. As tribos de Iahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto 1250-1050 a.C. 2a edição. São Paulo: Paulus, 2004, p. 518-540 (Coleção Bíblia e Sociologia). 53 54 ROSS, 2011, p. 205.

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(haron) de Adonai cairá sobre as nações rebeldes, e elas entrarão em pânico.

No v.6, o próprio Javé firma o reinado do Messias. O pronome pessoal ’ani “eu” enfatiza o sujeito da ação; neste caso, Adonai, que exerce total soberania sobre os povos. A forma verbal nasak (qal) “constituir” (literalmente “derramar”, “fundir”) está no perfeito, o que denota uma ação completa. Quer dizer, o reinado do Messias está plenamente constituído por Deus e jamais poderá ser desfeito pelas nações rebeldes.

Javé afirma que o reinado do seu Messias foi estabelecido “sobre o meu santo monte Sião”. No mundo antigo, os templos normalmente eram edificados nos montes, com vistas a simbolizar a vitória de uma determinada divindade sobre as forças do caos da natureza.55 No Antigo Oriente, muitas nações entendiam que o poder da natureza (especialmente inundações e o mar bravio) representava as forças dos inimigos que ameavam sua estabilidade política e ideológica, e, de acordo com a mentalidade dessas nações, as divindades que habitavam nos montes as protegiam dessas forças destruidoras. Aparentemente o salmista apresenta essa linguagem usual do Antigo Oriente, com o objetivo de descrever a vitória de Adonai sobre as forças dos povos e nações.

A expressão “Sião, o meu monte santo” poderia referenciar a cidade de Jerusalém, sobre a qual Javé decidiu revelar seu Nome (Sl 132.13). No entanto, é importante

55 WALTKE, 2010, p. 169.

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observar que o termo siyon (“Sião”) frequentemente é empregado nos Salmos, e só às vezes “refere-se à capital política de Judá, mas, com elevada frequência, designa a cidade de Deus na era vindoura”.56 Além do livro dos Salmos, vários textos do Antigo Testamento se referem a Sião como o lugar onde o Senhor há de habitar para sempre (Zc 8.3); ali, no futuro, todos os povos se reunirão a fim de prestar culto ao Senhor (Is 2.3; Mq 4.2; cf. Is 27.13). No Novo Testamento, Sião não é a capital política do reino de Davi, mas sim, é a Jerusalém celestial (Rm 11.2657; Hb 12.22; cf. Gl 4.26,27); o Senhor Jesus “ressuscitado é posto como Senhor na Sião celestial”.58

Nota-se que o estabelecimento do reinado do Messias sobre Jerusalém (v.6) ocorre concomitantemente com a manifestação da “ira” e do “furor” de Adonai sobre as nações (v.5). O reinado do Messias se impõe sobre os reinados rebeldes dos povos. É verdade que, por várias ocasiões no Antigo Testamento, Javé defendeu a cidade de Jerusalém do ataque dos inimigos, e confirmou suas promessas ao reinado de Davi, e todos esses livramentos prenunciavam sua vitória final sobre as nações inimigas e

56 HARTLEY, John E.

!wYc

(tsîyôn). In: HARRIS, R, Laird; ARCHER, Jr, Gleason L.; WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, verbete 1910, p. 1282. 57 Em Romanos 11.26, Paulo confere para Isaías 59.20 a seguinte interpretação: o Senhor vem “de Sião”, isto é, da Sião celestial, o que corresponde à sua concepção da Jerusalém celestial (cf. Gl 4.26,27). SEIFRID, Mark A., “Romanos”. In: BEALE, G. K.; CARSON, D. A Carson. Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 813. 58 SEIFRID, p. 813. Veja a interpretação de Mark A. Seifrid, sobre a citação

de Is 28.16 em Rm 9.33.

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o estabelecimento final do seu reino a acorrerem no Dia do juízo.59 Todos esses livramentos, e também o reinado político de Davi sobre o Israel antigo, eram somente sombras de realidades que começaram a ser cumpridas no Messias revelado no Novo Testamento. No entanto, de acordo com a interpretação proposta por esse artigo, “o meu santo monte Sião” não é uma referência à Jerusalém que abrigou o reinado político de Davi e o templo, mas à morada de Deus nos céus. Ou seja, utilizando a linguagem hermenêutica, podemos dizer que “Sião” não se refere às sombras (reinado de Davi), mas à própria realidade (reinado do Messias, Cristo). O argumento que pesa a favor dessa afirmativa será desenvolvido na análise dos v.7-9.

3a estrofe: v.7-9. A confirmação do reinado do Messias – A voz do Messias

7 Proclamarei o decreto de Javé:

Ele me disse:

Tu és meu Filho; eu hoje te gerei60. 8 Pede-me61, e eu te darei as nações por tua herança, e por tua possessão as extremidades da terra.

59 WALTKE, 2010, p.169. 60 yalad qal perfeito “gerar”.

61 xa’al qal imperativo “pedir”, seguido pela partícula

yNMm

+ sufixo da primeira pessoa singular).

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(preposição

!m

9 Tu as quebrarás62 com vara de ferro, e como um vaso de oleiro as despedaçarás63.

O v.7 é fala do Messias, que proclama o hoq, “decreto”. No Antigo Testamento, o termo hoq alude ao documento que legitimava o domínio do rei, redigido na ocasião de sua entronização.64 Em 2Rs 11.12, esse documento é chamado de ‘edut, “testemunho”. “O decreto é estatuto escrito: é a inalterável declaração do propósito de Yahwéh65 em relação ao rei que está recitando o que Yahwéh disse.”66 Nessa perspectiva, o salmista estaria afirmando a legitimidade do reinado de Davi, que seria reforçada principalmente pela consideração de Davi com “filho” de Javé: “Tu és meu Filho; eu hoje te gerei”. De modo geral, os comentaristas têm reconhecido que a consideração do rei davídico como “filho” de Deus apresenta alguma relação com as fórmulas reais do Antigo Oriente Médio. Várias nações antigas consideravam seus monarcas como “filhos” dos deuses: no Egito, o faraó era divinizado, e na Babilônia e Assíria os reis eram revestidos de autoridade divina. Assim, a frase “tu és meu Filho; eu hoje te gerei” poderia ter alguma relação específica com a ideologia mesopotâmica, transmitindo a ideia de que no dia de sua coroação (“hoje”) o monarca de Judá era

62 ra‘ah qal imperfeito “quebrar’ 63 napas piel imperfeito “despedaçar”, “quebrar em pedaços”. 64 KRAUS, 1988, p. 129-130.

65 Groningen translitera o nome sagrado

como “Yahwéh”, e nós o transliteramos como “Javé”. Respeitamos sua proposta de transliteração na citação. 66 GRONINGEN, 1995, p. 307.

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investido de autoridade para representar os interesses do reinado de Javé sobre a terra. Os teologos que propõem a leitura tipológica do Salmo 2, por sua vez, mesmo admitindo a linguagem do ritual da coração dos reis davídicos nesse salmo, defendem que a referência é o “ato pactual de Yahwéh com Davi quando as promessas foram feitas e as relações entre rei-pai e rei-filho foram estabelecidas”67. Assim, Javé considerou Davi como seu “filho” (cf. 2Sm 7.14). Davi foi adotado por Javé, no momento em que foi investido de autoridade de Javé para reinar, e é nesse contexto que deve ser entendida a promessa da subsistência eterna do seu trono (2Sm 7.13). No entanto, a teologia patrística (pais da igreja), a partir de At 13.33 e Hb 1.5, reconheceu no Sl 2.7 uma referência à geração eterna do Messias. Assim, esse v.7 é uma declaração da legitimidade do reinado do Messias. Essa interpretação deve ser preferida à leitura tipológica, pois, conforme esse artigo já constatou, o reinado descrito aqui no Salmo 2 extrapola o reinado regional de Davi. Mas é preciso reconhecer o mérito da leitura tipológica concernente ao sentido do verbo hebraico yalad, “gerar”: não se trata do nascimento, mas sim do revestimento de autoridade para o exercício do reinado. Então, esse artigo rejeita a aplicação do Salmo 2 ao reinado de Davi, proposta pela leitura tipológica, mas aceita que sentido cristológico do verbo yalad “gerar” só pode ser compreendido em analogia à cerimônia de coração dos reis antigos. Quando aplicado a Cristo, o verbo hebraico yalad significa que o

67 GRONINGEN, 1995, p. 307.

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Filho, a partir de sua ressurreição, recebeu autoridade do Pai para reinar e para exercer o ofício sacerdotal (cf. At 13.33 e Hb 1.5), do mesmo modo como os reis antigos eram investidos de autoridade para reinar no momento da coroação.

A universalidade do reinado do Messias é afirmada no v.8. O termo nahalah, “herança”, é explicado na segunda frase como ’ahuzah “possessão”, “propriedade”. À luz do v.9, pode-se notar que o pedido do Messias descrito nesse v.8 certamente será realizado. Aqueles que se levantaram contra o domínio do Messias (v.1) passarão a ser propriedade do Messias. A segunda frase do v.8 afirma que o domínio messiânico deverá se estender às “extremidades da terra” (‘apse-’ares), que pertencem a Javé, o Deus de Israel (Sl 24.1-2; 47.2, 8; 89.8; Is 6.3). Toda a ’ahuzah/“propriedade” da terra será do Messias (veja Sl 18.43-47; 72.8-11; 89.25). É difícil aplicar essas palavras aos reis da monarquia de Davi. Isso porque claramente o reinado descrito nesse v.8 abrange toda a terra, diferente do reinado local de Davi sobre o antigo Israel. Muitos comentaristas acreditam que o termo “terra” (hebraico ’eres) pode ter o sentido de “região”, e, se assim for, os “reis” mencionados no v.2 poderiam ser os líderes das nações vizinhas de Israel subjugadas à monarquia de Davi68, e desse modo, o v.8 faria alusão às “extremidades da região” (o termo ’eres assim estaria se referindo ao reinado local de Davi).69 No entanto, em outros textos do Antigo Testamento, o termo ’epes “extremidade” é empregado

68 CARSON, 2015, p. 48. 69 CARSON, 2015, p. 50.

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para descrever a extensão mundial do reinado de Deus (Is 52.10; Zc 9.10).70 Então, o reinado descrito aqui no Salmo 2 não pode ser interpretado em termos regionais. Portanto, as palavras do Sl 2.8 lançam muito mais luzes sobre o antítipo (Messias) do que sobre o tipo (governo político de Davi).

No v.9, os dois verbos empregados descrevem o poder destruidor do Messias. Ambos, ra‘ah (qal imperfeito) e napas (piel imperfeito), significam “quebrar”, mas o segundo é mais forte: “quebrar em pedaços”, com o sentido de “despedaçar”. Na primeira frase, a palavra xebet “vara” refere-se ao cetro do rei. Aqui nesse verso, xebet, junto com o termo barzel “ferro”, representam o poder destrutivo do Messias sobre seus inimigos. A segunda frase, “como um vaso de oleiro as despedaçarás”, parece aludir a um costume do antigo Egito.71 Os faraós escreviam os nomes de cada cidade que estava sob o domínio egípcio em um vaso de barro, e guardavam esse recipiente de barro em um templo, na presença de um dos deuses egípcios. Caso uma daquelas cidades se rebelasse contra o poder do Egito, o vaso, onde estava escrito o nome da cidade, era quebrado, e o destino trágico da cidade rebelde estava decretado. Essa cidade certamente seria destruída. Não haveria nenhuma chance de resistir. Da mesma forma, o Rei-Messias destruirá poderosamente as nações rebeldes. Os poderes humanos rebeldes não poderão resistir à ação

70 FEINBERG, Charles L.

spea,

(’āpēs). In: HARRIS, R, Laird; ARCHER, Jr, Gleason L.; WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, verbete 147, p. 109. 71 ROSS, 2011, p. 210.

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poderosa do Filho de Javé.

4a estrofe: v.10-12. Uma palavra de exortação

10 E agora, reis, sede prudentes72; deixai- vos corrigir73, juízes da terra. 11 Servi74 a Javé com temor e alegrai75 com tremor. 12 Beijai76 o Filho para que não se ire77, e pereçais no caminho, pois78 se acenderá79 rapidamente a sua ira.

Bem-aventurados todos os que se refugiam80 nele.

Os v.10-12 apresentam vários verbos no imperativo. Os melakim “reis” e xopte ’ares “juízes da terra” (v.10) compõe a liderança política das nações. Eles recebem a ordem para se voltarem para Javé e seu Messias.

No v.10, a liderança política é convocada para receber correção. Nas duas primeiras frases, notam-se dois verbos utilizados na literatura sapiencial: “ser prudente” (sakal hifil imperativo) e “corrigir” (yasar nifal imperativo), “disciplinar”. Alcançar sabedoria é um processo que se

72 sakal hifil imperativo “ser prudente”. 73 yasar nifal imperativo “corrigir”, “disciplinar”. 74 ‘abad qal imperativo “servir”, “servir como subordinado”. 75 gil qal imperativo “alegrar”. 76 naxaq piel imperativo “beijar”. 77 ’anap qal imperfeito “estar irado”. 78 ki “pois”, “certamente”. 79 ba‘ar qal imperfeito “acender”, “queimar”. 80 hasah qal particípio “buscar refúgio”, “colocar confiança em [Deus]”.

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constrói pela correção/disciplina.

No v.11, os líderes são convocados a “servir” a Javé. O verbo ‘abad “servir” também pode ser traduzido como “adorar”. Aqui, é uma adoração “com temor”. A adoração, conforme apresentada nas Escrituras, vem acompanhada de temor. Mas é um temor acompanhado com alegria: “alegrai” (gil qal imperativo). No v.12, a adoração a Javé se estende ao seu Messias. O Texto Masorrético inicia- se com a expressão naxxqu-bar81, “beijai o filho”, onde se lê verbo piel imperativo naxaq “beijar”, tendo como objeto o substantivo bar “filho”. A Bíblia de Jerusalém82 segue a sugestão do aparato crítico da Biblia Hebraica Stuttgartensia83, e propõe a alteração do Texto Massorético para bir‘adah naxxqu leraglayw84, “beijai os seus pés com tremor”. De acordo com essa proposta, a palavra bir‘adah “com tremor” do final do v.11 deve ser transposta para o início do v.12, onde o substantivo bar “filho” é suprimido e em seu lugar é inserido o termo leraglayw “para seus pés”, precedido pelo verbo naxxqu “beijai”.85 Weiser também adota essa mudança, e diz que a expressão “beijar seus pés” origina-se “no costume conhecido na Babilônia e no Egito

81

82 Bíblia de Jerusalém – Nova Edição, revista e ampliada. 5.ed. São Paulo:

Sociedade Bíblica Internacional, Paulus, 2002, p. 865. 83 ELLIGER, K.; RUDOLPH, W. Biblia Hebraica Stuttgartensia. 5.ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1997, p. 1088.

84

qv;n 85 Veja outras propostas de alteração, em BEYSE.

(nāšaq). In: BOTTERWECK, G. Johannes; RINGGREN, Helmer e FABRY, Heinz- Josef.  eological Dictionary of the Old Testament. Vol. 10. Grand Rapids: William B. Eerdmans Publisching Company, 1999, p. 75-76.

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de beijar os pés em sinal de sujeição e homenagem”.86 No entanto, o Texto Massorético é bastante compreensível, e no estado atual também pode apresentar essa mesma ideia. Quer dizer, “beijar” (naxaq) pode transmitir o sentido cultual87, e indica reverência, sugerindo a ideia de que o “Filho” deve ser adorado. A palavra “Filho” é a tradução da palavra aramaica bar. O salmista usa aqui a língua aramaica provavelmente porque está dirigindo sua palavra aos reis pagãos que falavam o aramaico.88 Desse modo, o paralelo entre o v.11 e o v.12 torna-se inevitável. No v.11, os reis pagãos são convocados a adorar Javé (“servi a Javé”); no v.12, esses mesmos personagens são solicitados a adorar o Filho (“beijai o Filho”).

Também é importante observar que a ira do Messias (na primeira frase, o verbo ye’enap qal imperfeito, da raiz ’anap “estar irado”, e na segunda frase o substantivo com o sufixo pronominal appo “sua ira”) é equiparada à ira de Adonai, referida no v.5. Quer dizer, a ira do Filho é a ira de Deus. Nesse ponto, uma observação de Schwantes é oportuna:

Nos v.10-12, Javé e seu rei parecem ser idênticos: a exigência é a de subjugação sob Javé; mas o conteúdo desta submissão pressupõe o reconhecimento submisso do ungido. E, na afirmação final, tanto se felicita quem aceita Javé quanto quem se submete ao soberano. Portanto, a vinculação entre Javé e o ungido não poderia ser mais estreita.89

86 WEISER, 1994, p. 79. 87 Cf.1Rs 19.18; Os 13.2. BEYSE, 1999, p. 76. 88 ROSS, 2011, p. 212. 89 SCHWANTES, 2008, p. 24.

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Entretanto, ao que parece, Javé e o seu rei não somente “parecem ser idênticos”. Eles são idênticos! Isso é evidenciado na última frase do v.12: “Bem-aventurados todos os que se refugiam nele”. A preposição hebraica sufixada com a terceira pessoa singular masculino, bo90 “nele”, é uma referência ao “Filho”. É notável a identificação do Filho com Javé. Em outros Salmos, os “bem-aventurados” (’axre) são apresentados como aqueles que se submetem a Javé: “Bem-aventurado (’axre) o homem que teme a Javé” (Sl 112.1; cf. 94.12; 119.1,2 e 128.1,2). De acordo com o Sl 2.12, aqueles que creem no Filho são “bem-aventurados” (’axre), porque não serão consumidos pela ira do Filho, antes, Nele encontrarão refúgio. O verbo hasah “buscar refúgio” figuradamente descreve a fé em Javé, e poderia ser traduzido como “depositar a confiança em (Deus)”.91 O substantivo mahseh “refúgio”, “é um ‘abrigo’, um lugar de segurança e proteção de elementos hostis como o sol abrasador ou a chuva”92 (Sl 104.18; Is 4.6; Jó 24.8). O verbo e o substantivo descrevem figuradamente a ação de confiar em algo ou alguém, e no livro dos Salmos, essas palavras são empregadas para descrever figuradamente a confiança

90

Ab .

91 WISEMAN, Donald J.

(ḥāsâ). In: HARRIS, R, Laird; ARCHER, Jr, Gleason L.; WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, verbete 700, p. 503.

Confira GAMBERONI.

(ḥāsâ). In: BOTTERWECK, G. Johannes; RINGGREN, Helmer e FABRY, Heinz-Josef.  eological Dictionary of the Old Testament. Vol. 5. Grand Rapids: William B. Eerdmans Publisching Company, 1986, p. 64-75. 92 FUTATO, 2011, p. 82.

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em Deus, que é o “Refúgio” do crente (mahseh, Sl 14.6; 46.1[2]). Assim, aqui no Sl 2.12, o Messias é o refúgio em quem o salmista confia. Daí a tradução da Bíblia King James Atualizada: “Verdadeiramente felizes são todos os que nele depositam sua plena confiança”. “O que o medo e o orgulho interpretam como sendo escravidão (v.3), é, na realidade, segurança e felicidade. E não há refúgio contra Ele, mas apenas nele.”93

Assim, vários Salmos afirmam que Deus é digno de ser confiando, como o Messias no Sl 2.12b. É o que afirma Salmo 34.8: “Oh! Provai e vede que Javé é bom; bem- aventurado (’axre) o homem que nele se refugia (hasah).” E, à semelhança do Sl 2.12b, vários outros salmos afirmam que o refúgio/segurança do “bem-aventurado” (’axre) está em Deus.94

Portanto, o pronome “nele” no Sl 2.12b só tem o Messias divino como referente. O rei humano (dinastia política de Davi) não é referenciado nesse pronome.95 É verdade que o reinado de Davi poderia ser apresentado aqui como um refúgio protetor do povo de Israel, pois era através do exército davídico que Javé livrava o seu povo do domínio dos inimigos; assim, confiar na monarquia davídica, em última instância significaria confiar em Javé. O problema para essa interpretação é que o verbo 93 KIDNER, Derek. Salmos 1-72: Introdução e Comentário. São Paulo:

Vida Nova, 1980 [Reimpresso em 2011], p. 68-69 (Série Cultura Bíblica). 94 Salmo 40.4: “Bem-aventurado (’axre) o homem que põe no Senhor a sua confiança e não pende para os arrogantes, nem para os afeiçoados à mentira.” Salmo 84.12: “Ó Senhor dos Exércitos, feliz (’axre) o homem que em ti confia.” Salmo 146.5: “Bem-aventurado (’axre) aquele que tem o Deus de Jacó por seu

auxílio, cuja esperança está no Senhor, seu Deus.” 95 Contra FUTATO, 2011, p. 87.

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hasah ocorre vinte e três vezes no livro dos Salmos96, e o substantivo mahseh ocorre doze vezes97, e tanto o verbo como o substantivo em todas as ocorrências têm unicamente Deus como referente.98

Portanto, é praticamente impossível não perceber que a última declaração do v.12 apresenta a divindade do Messias. Ora, sendo assim, a expressão “tu és meu Filho; eu hoje te gerei” (v.7) deveria ser entendida como alusão à divindade do Messias. Não é sem razão, pois, que autor aos Hebreus faz uso dessa expressão para argumentar a favor da divindade do Filho de Deus (Hb 1.5). Ou seja, a divindade do Messias foi comprovada por sua ressurreição, e foi através da ressurreição que ele recebeu autoridade do Pai para reinar.99 Assim, a expressão “tu és meu Filho; eu hoje te gerei” pode ser entendida como uma fórmula de entronização utilizada no mundo antigo no momento da entronização dos monarcas (cf. 2Sm 7.14), mas no Sl 2.7, a expressão é aplicada ao Messias-Rei. Ou seja, o Messias foi investido de autoridade para reinar a partir de sua ressurreição, à semelhança do rei que, no momento

96 Sl 2.12; 5.11[12[; 7.1[2[; 11.1; 16.1; 17.7; 18.2[3], 30[31]; 25.20; 31.1[2], 19[20]; 34.8[9], 22[23]; 36.7[8]; 37.40; 57.1[2] (2x); 61.4[5]; 64.11; 71.1; 91.4; 118.8, 9; 141.8; 144.2. 97 Sl 14.6; 46.1[2]; 61.3[4]; 62.7[8]; 8[9]; 71.7; 73.28; 91.2, 9; 94.22;

104.18; 142.5[6]. 98 No caso do substantivo, a única exceção é o salmo 104.18, em que o termo mahseh literalmente descreve a “rocha” (sela‘) onde moram as “arganazes”. 99 Veja a citação que o autor aos Hebreus faz do Sl 2.7 em Hb 1.5, considerando a argumentação geral que ele desenvolve em Hb 1 – 2, notando especialmente as seguintes expressões: “havendo ele[Jesus] mesmo feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade nas alturas” (Hb 1.3); “Jesus, coroado de glória e honra, por causa da paixão da morte” (Hb 2.9).

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de sua entronização, era investido com autoridade divina para reinar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo, amparado nos recursos da análise exegética, constatou que o maxiah (“Ungido”) apresentado no Salmo 2 não pode ser identificado com o monarca davídico. Pois o reinado messiânico nesse texto apresenta caráter universal e não pode ser equiparado com o reinado político regional de Davi. Na verdade, o Rei apresentado pelo salmista é identificado com o próprio Javé. Assim, conclui-se que a narrativa do Salmo 2, por si mesma, apresenta o caráter prenunciativo e profético. Tal constatação sugere que, muito antes dos autores do Novo Testamento aplicarem o Salmo 2 a Jesus de Nazaré, o próprio texto veterotestamentário já anunciava o futuro Messias. Sendo assim, a afirmativa de que os autores neotestamentários citaram o Salmo 2 sem a devida consideração pelo contexto imediato do texto hebraico não pode ser fundamentada, já que a análise exegética desse Salmo demonstra que sua aplicação para Jesus não é fruto de reinterpretações ou reinvenções, antes, é reclamada pelo próprio texto hebraico.

Portanto, a monarquia de Davi representa tipologicamente o reinado messiânico, mas isso não significa que hermeneuticamente todas as referências ao maxiah devam ser necessariamente aplicadas ao tipo antes de ser aplicadas ao antítipo. No caso do Salmo 2, o maxiah não diz respeito a Davi, nem sequer no sentido

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tipológico100, mas refere-se diretamente ao Messias.

De fato, a leitura tipológica é legítima e precisa ser empregada na interpretação do Antigo Testamento, mas isso não significa que ela deva ser utilizada na interpretação de todos os textos veterotestamentários. Pois, embora vários textos apresentem personagens, fatos históricos e instituições da antiga aliança que apontam tipologicamente para Cristo, por outro lado, alguns textos, como o Salmo 2, fazem alusão direta ao Messias sem a mediação histórica do tipo.

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100 Confirmando assim a interpretação de Lutero: PAK, 2010, p. 33.

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