Amós: o profeta, o contexto e o texto

Postado em 25 de outubro de 2018 por

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Revista Theos – Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas. Campinas: 7a Edição, V.6 – No 01 – Julho de 2011. ISSN: 1980-0215.

Luciano R. Peterlevitz1

Resumo

O profeta Amós é parte integrante da população campesina que se enveredava por um

processo de empobrecimento. Este empobrecimento foi ocasionado pelas políticas

usurpadoras dos direitos humanos, vigentes no antigo Israel em meados do século VIII

a.C., promovidas pelo Estado de Jeroboão II, e enraizadas nos vilarejos do reino do

Norte. Tais políticas fundamentavam-se na retirada extorsiva da produção camponesa,

mediante o modo de produção denominado de tributarismo. Constata-se que, naquele

cenário, a literatura do profeta surge na coletividade de um grupo social, no qual Amós

estava inserido. O texto atribuído a Amós representa o protesto daquele grupo contra a

opressão e as injustiças sociais patrocinadas pelo Estado de Israel. Assim, a situação

humilhante do antigo Israel constitui-se a chave hermenêutica do livro de Amós.

Palavras-chave: Amós – Estado – tributarismo –literatura profética – profetismo

Abstract

Prophet Amos is an integrating part of the rural population which was

getting into a process of impoverishment. This situation was caused by usurping human

rights political system present in the ancient Israel in the midle of the 8th

century b.C., launched by the Jeroboam II regime and assimilated by

villages from the North kingdown. That political system was rooted in an

extortionate rural production withdrawal ruled by a kind of production

called tax system. It seems that in that scenary the prophet writtings come up in a

particular social community in which Amos was inserted. The text assigned to Amos

represents the community’s protest against social persecution and grievancies

1

Luciano Robson Peterlevitz é Coordenador Acadêmico do curso de teologia no Seminário Batista de Campinas, onde também é professor de Antigo Testamento. Mestre e Doutorando em Ciências da Religião, na área de Literatura e Mundo Bíblico, pela Universidade Metodista de São Paulo. É pastor na Missão Batista Vida Nova/SP.

1

supported by the State of Israel. Therefore, the humiliating situation

of the ancient Israel becomes the hemeneutical key to the book of Amos.

Key words: Amos – State – tax lawyers, prophetic literature – Prophecy

Introdução

Grande parte da pesquisa do livro de Amós tem constatado que a literatura do

profeta surge como um protesto contra a opressão e a injustiça social vigentes no antigo

Israel, em meados do século VIII a.C. Para entender a mensagem do livro, é preciso

considerar a situação humilhante dos pobres daquele cenário. Amós fala em nome do

Senhor, como um leão que ruge contra a injustiça social (1.2). Assim, o presente artigo

propõe-se a analisar introdutoramente a literatura de Amós, a partir da perspectiva da

realidade social do profeta. Dialogaremos, sobretudo, com a teologia latino-americana, principalmente com os trabalhos de Milton Schwantes2 e Haroldo Reimer3.

Focalizando as contradições sociais do antigo Israel no século VIII a.C., este

artigo analisará algumas propostas hermenêuticas para o livro de Amós, indicando

também algumas implicações para a Igreja atual. A motivação deste artigo é a análise

do livro de Amós para redirecionar o debate da missão da Igreja junto aos empobrecidos

e injustiçados de nossa sociedade. Para isso, darei três passos. Num primeiro, pretendo

analisar quem foi o profeta Amós. Num segundo, investigarei seu contexto histórico. E,

por fim, pretendo mostrar ao leitor o processo de composição do texto de Amós,

focalizando a literatura do profeta como um protesto social.

  1. O profeta

O nome “Amós” significa “carregador de cargas” (derivado do verbo hebraico

amas, “erguer um fardo”, “carregar”). Presume-se que o nome seja uma abreviação de

2 SCHWANTES, Milton Schwantes. “Profecia e Estado. Uma proposta para a hermenêutica profética”. In: Estudos Teológicos. São Leopoldo: Faculdade de Teologia, vol.22, 1982, p.105-145. Veja também do mesmo autor: A terra não pode suportar suas palavras – reflexão e estudo sobre Amós. São Paulo: Paulinas, 2004, 206p. (Coleção Bíblia e história). 3 REIMER, Haroldo. Richtet auf das Recht! Studien zur Botschaft des Amos. Stuttgart: Verlag Katholisches Bibelwerk, 1992 (série: Stuttgarter Bibelstudien, vol. 149). As considerações a respeito deste texto podem ser encontradas em outro artigo de Reimer: “Amós, profeta do juízo e justiça”. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana, vol. 35/36. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 171-190. Texto disponível em www.haroldoreimer.pro.br. Veja também, neste site, o texto “Agentes e mecanismos de opressão e exploração em Amós”. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana, vol.12. Petropolis: Vozes, 1992, p. 51-60.

2

4 “Amasia”, cujo sentido é “Javé carrega, protege” (2Cr 17.16).

O sentido do nome

talvez aluda à mensagem do livro, que, constituído-se basicamente uma mensagem de

juízo, defini-se como um fardo pesado a ser transmitido ao povo de Israel. De fato,

pregar uma mensagem de juízo divino é um fardo, tanto para quem prega quanto para

quem ouve.

Amós é oriundo de Tecoa (1.1), um povoado de Judá, localizado a 9 km

sudoeste de Belém. Crabtree afirma que Tecoa estava numa elevação de 920 metros,

sendo estrategicamente usada no toque de trombetas e transmissão de anúncios ao povo

(Jr 6.1).

5

Nessa vila a sabedoria popular era bastante alimentada.

6

Essa informação

parece ser confirmada por 2Sm 14.2.

Mas, quem foi Amós? Uma breve análise em 1.1 e 7.14-15 elucidará essa

questão.

Amós era um profetizador e um visionário. Em 7.14, ele declara: “Não sou profeta, nem filho de profeta…” 7. Por que essa recusa? Ora, ele se recusa a identificar-se

com os profetas profissionais do palácio e dos templos. Tais religiosos estavam aliados

às políticas expansionistas e injustas promovidas pelo Estado de Israel. Na verdade,

Amós declara que foi chamado pelo Senhor (7.15). Deus o tornou um profetizador. O

pastor de Tecoa foi coagido por Javé (3.8).

Amós é reconhecidamente um visionário: 7.12. Isso é bem evidenciado pelas

visões do profeta, nos capítulos 7 – 9. Em 1.1, também encontramos uma referência

sobre a vidência: “viu contra Israel”. O verbo utilizado aqui é hazah, e, diferente de 7.1,

4, 7; 8.1; 9.1 (onde usa-se ra’ah, “ver”, “olhar”), refere-se exclusivamente ao “ver”

sobrenatural da revelação divina.

Sobre a profissão de Amós, também precisamos considerar 1.1 e 7.14-15. O

profeta tem três ocupações: pastor (de gado miúdo), vaqueiro e colhedor de sicômoros.

Em 1.1, Amós é identificado como “criador de ovelhas”, tradução da palavra hebraica noqed.8 O mesmo termo é aplicado ao rei de Moabe, Mesa (2Rs 3.4). Por essa

referência, muitos estudiosos concluem que o noqed não indica um mero pastor

4 JEREMIAS, Jörg. The book of Amos – a commentary. Tradução: Douglas W. Stott. Louisville: Westminster John Knox, 1998, p.12 (Old Testament Library). 5 CRABTREE, A. R. O Livro de Amós. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1960, p.10. 6 SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras – reflexão e estudo sobre Amós, p.50. 7 Alguns exegetas traduzem as sentenças no passado: “Eu não era um profeta, nem filho de profeta.” É o caso de KIRST, Nelson. Amós – textos selecionados. São Leopoldo: Faculdade de Teologia, 1981, p.113- 116. 8 A relação de noqed com a língua ugarítica é bastante questionável. Veja KIRST, Nelson. Amós – textos selecionados, p.37.

3

9 (hebraico ro‘eh), mas sim um proprietário.

Georg Fohrer afirma que ele viveu “como

proprietário autônomo de rebanhos”, “talvez tivesse uma propriedade na região de colinas”10. Para Gerhard von Rad, Amós “provavelmente exercia uma profissão elevada

e dispunha de meios suficientes de subsistência”.

11

Mas existem boas evidências para acreditarmos que Amós integrava a

população camponesa empobrecida. Em 7.14, o termo que descreve a ocupação de

Amós é boqer. Embora o termo possa descrever um pastor, num sentido bastante amplo,

ele mantém uma relação lingüística com baqar, “gado”, o que sugere que Amós

trabalhava com gado e com ovelhas.

12

Entretanto, de acordo com o v.15, parece que

Amós não trabalhava mais com ovelhas. Assim, o boqer é alguém que cuida de bois. O profeta seria, pois, um “pastor de bois”13. O boqer não poderia ser criador e proprietário

de gado, “ainda mais que posse de gado é expresso de outro modo (cf. Gn 12.16; Jó

1.3)…”.

14

Além disso, há outra informação sobre Amós: “cultivador de sicômoros”

(hebraico: boles xiqmin). O sicômoro, da família da figueira, encontrava-se nas

baixadas litorâneas e no vale do Rio Jordão. Portanto, o fruto inexistia na cidade natal

de Amós, Tecoa. A atividade de Amós não era só o colhimento das frutas. Pois o

hebraico boles, da raiz bls, aludi não somente ao coletar das frutas dos sicômoros, mas,

com maior probabilidade, indica um ato de escoriação, um arranhão nas frutas com a

unha ou com um pedacinho de metal, antes do amadurecimento, visando a adocicar a

fruta.

15

Essa não era uma atividade para pessoas da classe média. Era um trabalho

penoso. Para quem morava em Técoa, deslocamentos periódicos eram exigidos em

direção às regiões dos sicômoros.

Deste modo, Amós se define como vaqueiro e colhedor de sicômoros. Essas

eram suas atividades por ocasião do confronto entre ele e o sacerdote Amazias. Mas,

quando foi chamado por Javé, sua ocupação era outra. No v.15, sua ocupação

9 KIRST, Nelson. Amós – textos selecionados, p.37. 10 SELLIN, Ernst; FOHRER, Georg. Introdução ao Antigo Testamento, vol.2. São Paulo: Paulinas, 1978, p.648, 649. 11 VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento, vol.2. São Paulo: Aste, 1974, p.124. 12 MCCOMISKEY, Thomas E. “Amos”. In GAEBELEIN, Frank E. (editor). Expositor’s Bible Commentary, vol. 7: Daniel and the Minor Prophets. Grand Rapids: Zondervan, 1985, p.279. 13 SCHWANTES, Milton. “Profecia e Estado – Uma proposta para a hermenêutica profética”, p.141. 14 SCHWANTES, Milton. “Profecia e Estado – Uma proposta para a hermenêutica profética”, p.141. 15 WRIGHT, T.J. Wright. “Amos and the ‘sycomore fig”. In: Vetus Testamentum, 26. Leiden: E.J. Brill, 1976, p.362-368.

4

restringia-se ao “rebanho de gado” (miúdo: ovelhas, ovinos e cabrinos). Esse é o

sentido da palavra hebraica so’n.

Portanto, a profissão de Amós por ocasião do conflito em Betel (7.14) não é a

mesma da ocasião de sua vocação (7.15; cf. 1.1). A multiplicidade e a periodicidade de

ocupações levam-nos à seguinte conclusão: Amós não era um homem de posses;

ganhava seu pão por meio de diversas ocupações penosas e sazonais. O profeta

integrava a população empobrecida pelos projetos expansionistas de Jeroboão II, e de

Uzias no Sul (veja abaixo). “Hoje seria uma espécie de bóia-fria.”

16

Assim, a situação

de pobreza de Amós é uma porta de entrada para a compreensão da mensagem do seu

livro.

  1. O contexto

A época de Amós é bem definida em 1.1: nos dias de Uzias, rei de Judá, e nos

dias de Jeroboão, filho de Joás, rei de Israel, dois anos antes do terremoto. Uzias

reinou em Judá a partir de 787/6 e viveu até 746 a.C. Mas o alvo principal da mensagem

de Amós foi Jeroboão II (Am 7.10-17). Este governou de 787/6 a 747/6 a.C.

Considerando que em 757/6 Uzias adoeceu, e precisou entregar o reino a seu filho

Jotão, e este não é mencionado em Am 1.1, “é de se supor que Amós tenha atuado antes

do último decênio do rei Jeroboão II”

17

. Ou seja, o período mais provável para a atuação

de Amós situa-se por volta de 760 a.C. Há um tempo específico dessa atuação: “dois

anos antes do terremoto”, fato que, segundo algumas descobertas arqueológicas, ocorreu

por volta de 760 a.C. Portanto, Amós inaugura a profecia literária do Antigo

Testamento.

18

Cronologicamente, ele é o primeiro dos profetas clássicos.

Averiguemos agora o período do nosso profeta. Como vimos, ele situa-se na

época de Jeroboão II, um dos últimos reis da dinastia de Jeú. Foi um período marcado

pela prosperidade econômica. Este desenvolvimento interno de Israel se explica pelo

cenário internacional da época:

1) O Reino de Damasco, que outrora se impôs sobre Israel (2Rs 13.3, 7), foi

sitiado pelos assírios, em 806 a.C. Ben-Hadade, rei de Damasco, foi coagido a pagar

tributos para Adadnarari III, rei da Assíria.

16 SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras – reflexão e estudo sobre Amós, p.52. 17 KIRST, Nelson. Amós – textos selecionados, p.11. 18 CRABTREE, A. R. O Livro de Amós, p.9.

5

2) Joás, pai de Jeroboão II, aproveitando-se da fragilidade de Damasco,

recuperou de Ben-Hadade as cidades que este havia conquistado de Israel (2Rs 13.25).

3) Jeroboão II continuou a expansão territorial iniciada por seu pai. Ele

submeteu o Estado de Damasco e dominou Hamate (2Rs 14.28). No sul, impôs-se até as

fronteiras do Mar Morto (2Rs 14.25, 28). Sobre o sucesso do rei de Israel, há uma

observação muito oportuna de Merrill: “Não houve outro reino que, desde os tempos de Salomão, tenha conseguido dominar sobre tamanha extensão territorial.”19

4) O período que se estende de 783 (morte de Adadnarari III) a 745 foi

marcado pelo enfraquecimento da Assíria. Os assírios tiveram seu poderio militar

ameaçado por um dos seus vizinhos, Urartu. O enfraquecimento da Assíria possibilitou

a expansão do reino de Jeroboão II. Este último período áureo de Israel terminou em

745 a.C., quando o poderoso monarca assírio Tiglate-Pileser III iniciou suas investidas

contra os Estados do corredor sírio-palestino.

No Sul, Uzias também gozou de conquistas militares. Dominou Edom, o

Neguebe e a Filistéia. Os dois reinos (Israel e Judá) controlaram as rotas comerciais, da

Fenícia até a Arábia. A riqueza de Israel era estampada nas luxuosas construções feitas

pelos mais abastados (Am 3.15; 5.11; 6.8). A arqueologia tem descoberto nítidas

diferenças entre as construções do século 8 a.C., no Israel antigo: havia casas abastadas, em contraste com muitas casas simples, habitadas por pobres.20 Contudo, isso não

aconteceu sem a radicalização da violência e da corrupção. Por isso, as conquistas do rei

de Israel foram notadas criticamente por Amós (6.13). “Criaram-se extremos de riqueza

e de pobreza. Os pequenos agricultores viam-se nas mãos de seus credores e chegavam

à escravidão para pagar suas dívidas. Os tribunais, bem pagos por quem podia, decidiam

sempre a favor dos ricos.”

21

Uma das imposições mais grotescas do reino de Jeroboão II foi à extorsiva

cobrança tributária, que objetiva manter as despesas do seu projeto expansionista. Os tributos eram direcionados à capital do reino, Samaria.22 O modo de produção do

19 MERRILL, Eugene H. História de Israel no Antigo Testamento – O reino de sacerdotes que Deus colocou entre as nações. Tradução: Romell S. Carneiro. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 2001, p.179. Veja também NOTH, Martin. História de Israel. Barcelona: Garriga, 1966, p.234. 20 ALBERTZ, Reiner. A History of Israelite Religion in the Old Testament Period – From Beginnings to the end of the Monarchy, vol.1. Louisville: Westminster John Knox, 1994, p.160. 21 DA SILVA. Airton José. A voz necessária – Encontro com os profetas do século VIII a.C. São Paulo: Paulus, 1998, p.50 (Biblioteca de estudos bíblicos). 22 Veja DONNER, Herbert. História de Israel e dos Povos Vizinhos, vol. 1. São Leopoldo: Sinodal/Vozes, 1997, p.318-329.

6

mundo bíblico, vigente na época de Amós, é o tributarismo. Nesse modelo, os

camponeses possuíam o meio de produção (terra), mas entregavam obrigatoriamente

significativas parcelas da produção para o Estado. Na verdade, o Estado é a cidade-

Estado, a organização que coordena o projeto tributário. O Estado territorial nada mais é

do que a coligação de várias cidades, sendo estas constituídas (quase?) exclusivamente

pela elite. A fonte de riqueza da organização citadina é o clã agrícola. Diante de

extorsões e cobrança tributária ostensiva, os camponeses protestavam. É o que se lê, por

exemplo, no protesto das tribos do Norte, em 1Rs 11 – 12.

O aumento das arrecadações tributárias, reclamado pelo Estado de Israel,

explica-se pela ânsia de Jeroboão em inserir-se no comércio internacional. As vias

comerciais internacionais cruzavam as terras israelitas (na Planície de Jezrael). Israel

almejava o ferro, o ouro e outras preciosidades. Mas, havia um problema: os produtos

agrícolas, com os quais Israel participava no comércio internacional, eram

desproporcionalmente mais baratos do que os metais preciosos. “Por isso, em Estados

economicamente ‘dependentes’, como Israel e Judá, costumava ser catastrófico para o

povo trabalhador.”

23

Os interesses comerciais não se restringiam à capital Samaria. Também se

enraizaram nas pequenas vilas israelitas. Isso explica o sucesso de Jeroboão II. Nesse

caso, houve uma convergência de interesses entre a corte Israelita e os anciãos dos

vilarejos. Os anciãos, que eram os juízes da época, sentenciavam por interesses

financeiros (2.6). O setor jurídico era apoiado por sacerdotes, mercadores, militares e

agricultores ricos. Essa realidade social foi severamente criticada por Amós (2.6-8; 5.7-

12; 8.4-6).

A arrecadação dos produtos era efetuada por dois meios: a religião e a

violência. A repressão militar era empregada quando os camponeses se recusavam a

entregar o tributo (Am 2.7; veja Mq 3.1-4). Mas a religião é um instrumento bem mais

eficaz. Os camponeses eram convencidos a entregar parte de suas produções nos

santuários, para assim receberem a ‘bênção’ divina. Entretanto, os produtos eram

direcionados ao Estado. Divulgavam-se as festas da colheita e os ritos nos santuários,

para o enriquecimento das cidades e dos templos. Daí a crítica de Amós aos templos:

4.4-5; 5.4-5; 7.9.

23 SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras – reflexão e estudo sobre Amós, p.20.

7

Assim, o cenário interno do antigo Israel no século VIII a.C. foi nitidamente

marcado por um processo de empobrecimento dos agricultores. O principal instrumento

gerador de pobreza foi à lei do crédito, construída sob uma taxação desproporcional às

colheitas dos agricultores.

24

Os credores confiscavam não somente as terras dos

devedores, mas também sua família. Quando as colheitas não eram suficientes para a

quitação da dívida, os agricultores eram obrigados e vender seus familiares, tornando-os

escravos, e, em alguns casos, eles mesmos eram submetidos à escravidão (Am 2.6; 8.4-

6). Perdiam a dignidade e o direito pessoais.

Portanto, quem ignora as contradições sociais da época de Amós dificilmente

compreenderá a mensagem do profeta. Considerando ainda que o profeta fosse parte

integrante dos camponeses empobrecidos do século, torna-se inevitável a conclusão de

que seu livro é uma clara defesa dos pobres e dos oprimidos socialmente.

  1. O texto

Nesse item, não me proponho a analisar a autoria do livro de Amós e os

problemas referentes à composição do texto. Basta notar que vários exegetas

reconhecem um longo processo na composição do livro. Afirmar-se que às palavras

originais de Amós foram agregadas várias camadas literárias. As primeiras camadas

teriam sido acrescentadas pelos discípulos de Amós, e as últimas seriam acréscimos da época do exílio babilônico.25 Entretanto, outros respeitados estudiosos atribuem a autoria do livro ao profeta de Tecoa.26 Isso não significa, é claro, que todo o livro seja

oriundo de Amós. “É provável que alguns poucos versículos estejam deslocados, ou

ligeiramente modificados. É também possível que haja algumas poucas interpolações. Tais emendas não modificam os ensinos do livro, nem diminuem o seu eterno valor.”27

Por exemplo: 1.1-2 e 7.10-17 nitidamente não foram escritos por Amós. Em 1.1, lemos

uma introdução histórica. Em 1.2 e 7.10-17 observa-se que o texto foi escrito na terceira

pessoa do singular, indicando uma composição de terceiros.

24 ALBERTZ, Reiner. A History of Israelite Religion in the Old Testament Period, p.160-161. 25 WOLFF, Hans Walter. Joel and Amos – A Commentary on the Books of the Prophets Joel and Amos. Philadelphia: Fortress, 1977, p.106-113. 26 ANDERSEN, Francis I.; FREEDMAN, David Noel. Amos – A new translation with introduction and commentary. New York: Doubleday, 1989, p.141-144. 27 CRABTREE, A. R. O Livro de Amós, p.30.

8

Assim, algumas partes do livro de Amós foram escritas por outras pessoas,

possivelmente pelos discípulos do profeta. Portanto, os profetas não eram solitários.

Eles enraizavam-se num grupo social, que forneceu o suporte necessário para que seus

textos fossem preservados.

28

Parte dos textos proféticos origina-se no grupo do profeta.

E, mesmos os textos escritos pelos profetas não representam somente as palavras de um

profeta, mas sim, as palavras e as aspirações de um grupo. A literatura profética, pois,

surge na coletividade. É o que evidenciaremos abaixo. Para tal, precisamos elucidar

uma peculiaridade da literatura profética, muito comum também em Amós: o dito

profético.

Estudos recentes têm elucidado a origem social dos textos proféticos. No contexto latino-americano, tem-se notado a importância do dito profético.29 Os ditos

seriam pequenas unidades literárias, originadas na entrega da mensagem do profeta aos

ouvintes. Exemplos: 1.3-5; 1.6-8; 1.9-10; 1.11-12; 1.13-15; 2.1-3; 2.4-5; 2.6-9, 13-16. O

dito é o primeiro estágio literário da formação dos textos proféticos.

Num segundo momento, tais ditos foram reunidos num conjunto maior.

Surgiam assim os panfletos.

30

Um panfleto poderia ser definido como uma composição

de ditos. Em 1.3 – 2.16, por exemplo, encontramos uma coletânea de ditos, um panfleto.

Outra coletânea pode ser encontrada em 3.3 – 4.3. Do mesmo modo, pequenas unidades

literárias podem ser identificadas em: 4.4-5; 5.4-5; 5.14-15; 5.16-17; 5.18-20; 5.21-27;

6.1-7; 7.1-3; 7.4-6; 7.7-9; 8.1-3 e 9.1-4.

No processo de formação de uma coleção de panfletos/coleções, evidencia-se

que a literatura profética não é somente a voz de um homem, nem somente a voz de

Deus. Observam-se, sim, muitas vozes que representam os sofrimentos dos oprimidos

da época de Amós. Tal tese, que aponta à dimensão social da organização da profecia,

tem sido desenvolvida principalmente por Milton Schwantes.

31

28 WILSON, Robert R. Profecia e sociedade no Antigo Israel. São Paulo: Edições Paulinas, 1993, 294p. [Bíblia e Sociologia] 29 SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras – reflexão e estudo sobre Amós, p.177, 178; GUTIÉRREZ, Carlos Mário Vásquez. Dito, panfleto e memória: uma abordagem a partir de Amós 3-6. Tese de doutoramento na Universidade Metodista da São Paulo. São Bernardo do Campo, 2002, 231p. 30 SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras – reflexão e estudo sobre Amós, p.147-150. 31 SCHWANTES, Milton. “Profecia e Organização. Anotações à luz de um texto (Am 2,6-16)”. In: Estudos Bíblicos, vol.5. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 26-39. Veja também do mesmo autor: Das Recht der Armen. Frankfurt / Bern / Las Vegas: Peter Lang, 1977, 312p. (Beiträge zur Biblischen Exegese und Theologie).

9

Para a compreensão da dimensão social da literatura profética, é interessante uma análise em Am 2.6-16, a partir das observações de Schwantes.32

No v.6b, percebem-se dois casos distintos. O primeiro, à semelhança de 5.12,

remete-nos ao contexto da jurisprudência: “Eis que vendem por prata o justo”. O “justo”

seriam aqueles que sofriam as injustiças nos tributais. Pois os juízes eram facilmente

subornados pelos ricos. O segundo caso seria a escravidão: “o pobre por um par de

sandálias”. Nesse caso, a razão da escravidão do pobre é a sua dívida de “um par de

sandálias”. Percebe-se, portanto, duas cenas, no v.6b. Pode ser que essas cenas estejam

relacionadas. A segunda poderia ser consequência da primeira. Os pobres sofriam

tamanhos prejuízos nos tribunais, e inevitavelmente eram levados à escravidão.

No v.7, três casos podem ser percebidos. O primeiro é a violência física contra

os fracos: “Pisam sobre o pó da terra na cabeça dos fracos”. Possivelmente o profeta

está se referindo à violência dos senhores contra os escravos; ou enfatiza a violência do

exército de Jeroboão contra os fracos. O segundo caso é semelhante ao primeiro do

v.6b. Trata-se da corrupção na jurisprudência: “E o caminho dos oprimidos desviam.” O

“caminho” seria um termo judicial. O terceiro caso, como o segundo do v.6b, faz

referência à escravidão, mas agora, enfocando o triste destino da jovem escrava: “Um

homem e seu pai dormem com a (mesma) jovem a fim de profanar o meu santo nome”.

Descreve-se aí o abuso sexual da jovem escrava.

O v.8 é muito parecido com o v.6b. Novamente dois casos são apresentados.

Contudo, há uma diferença entre as cenas do v.6b e essas do v.8. É que o v.8 visualiza

delitos praticados no âmbito do sagrado. O primeiro caso é este: para a obtenção de

produtos de subsistência (alimento, semente, etc.), os pobres têm suas roupas

empenhoradas: “Sobre roupas empenhadas deitam ao pé de cada altar”. Este fato

afrontava a lei mosaica, que proibia a penhora das roupas (capas) dos pobres (Ex 22.25-

26). O segundo caso se refere às multas para os culpados, possivelmente para aqueles

que atrasavam a entrega do tributo (Am 4.1; 5.11): “Vinho de multados bebem na casa

de seu deus”. Assim, os acusados no v.8 são sacerdotes que oprimem os pobres por dois

meios: ritos, através dos quais retiram o excedente da produção; e empréstimos em troca

de penhora indevida.

Dessa forma, Schwantes constata que a linguagem dos v.6b-8 não é coesa. Os

casos alistados são diferentes. Certamente as cenas descritas aí não envolvem somente a

32 SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras – reflexão e estudo sobre Amós, p.161-182.

10

pessoa de Amós. Na verdade, as vozes dos oprimidos são bem audíveis nesses versos.

Mas, muito mais do que um listagem de casos, de injustiças reinantes, podem-se

identificar a dimensão organizativa da literatura profética, aqui nos v.6b-8. Constata-se

que “a experiência sofrida de uns foi comunicada a outros. A dor partilhada agrupa. A

junção das diferentes injustiças sofridas por diferentes pessoas cria conexão, organização entre os implicados.”33 Aqueles que sofriam coligaram-se contra os

opressores!

Como se evidenciou em Am 2.6-8, os denunciados são senhores de escravos,

juízes que aceitam suborno, comerciantes, camponeses ricos e sacerdotes.

Mas, nos v.14-16, outros são os ameaçados. Esses pertencem ao exército.

Trata-se da infantaria (o “ágil”, o “forte”, o “valente”, nos v.14-15), o argueiro (v.15), o

cavaleiro (v.15), e o comandante (“o mais corajoso”, v.16). Constata-se, assim, um

descompasso: denunciados e ameaçados não são os mesmos. Essa disparidade acontece

porque a crítica de Amós não recai sobre pessoas, mas principalmente sobre as

estruturas da sociedade. Na época de Amós, não era o exército que cometia os pecados

alistados nos v.6b-8. Mas ele os viabilizava. A força das armas do exército inibia o

protesto dos camponeses. Mas, o mantenedor do exército é o Estado tributário opressor,

a grandeza estatal chamada por Amós de “Israel” (v.6).

Conclui-se que a literatura profética surgiu a partir da organização social dos

grupos oprimidos pelo Estado tributário. O agrupamento dos ditos (panfletos) é um feito

coletivo. Percebe-se assim que as coletâneas de ditos representam, por um lado, a fala

do profeta, mas por outro, expressa a memória de uma comunidade. Pelo que se

percebeu em 2.6-8, a articulação dos panfletos surge a partir da organização social. No

caso, a comunidade que organizou tais textos seriam os camponeses empobrecidos, com

os quais Amós se aliou.

Portanto, a redação do texto profético não é um evento solitário, mas coletivo.

A voz de Deus sem a voz dos sofridos não tem sentido!

O texto de Amós seria a composição de várias pequenas unidades literárias.

Tais unidades foram agrupadas em três unidades maiores:

Am 1 – 2: Primeiro conjunto (palavras de juízo contra os povos vizinhos e

contra Israel)

Am 3 – 6: Segundo conjunto (palavras de juízo contra Israel)

33 SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras – reflexão e estudo sobre Amós, p.173.

11

Am 7 – 9: Terceiro conjunto (visões de Amós)

Outra forma de percebermos a inserção das pequenas unidades num conjunto

literário maior seria observando a disposição a seguir:

Am 1 – 2: Primeiro conjunto:

1.1-2 introdução

1.3 – 2.16 ciclo dos povos (1.3-5; 1.6-8; 1.9-10; 1.11-12; 1.13-15; 2.1-3; 2.4-5;

2.6-9, 13-16)

Am 3 – 6: Segundo conjunto:

3.1-2 introdução

3.3 – 4.3 ciclo anti-Samaria

4.4-13 coletânea de ditos

5.1 – 6.14 lamento sobre a “casa de Israel” (cf. 5.1 e 6.1)

Am 7 – 9: Terceiro conjunto:

7.1-3+4-6+7-9 primeira, segunda e terceira visões

7.10-17 narração

8.1-3 quarta visão

8.4-14 coletânea de ditos

9.1-4 quinta visão

9.5-6 hino

9.7-10 ditos

9.11-15 palavras de graça

Conclusão

A compreensão da pessoa de Amós, sua profissão e missão, bem como a

compreensão do contexto histórico da primeira metade do século 8 a.C. (760 a.C.)

constituem-se a chave hermenêutica do livro de Amós.

Deste modo, é preciso corrigir um equívoco hermenêutico muito comum no

cenário evangélico, qual seja: a injustiça social é apenas um aspecto da pregação do

profeta Amós. Essa abordagem hermenêutica tende a marginalizar o protesto social do

pastor de Tecoa. Normalmente as igrejas evangélicas estudam o livro de Amós a partir

de uma série de temas, tais como: soberania de Deus sobre as nações; profeta como

12

arauto da verdade; culto/adoração como expressão de vida e não como ritual; etc.

Geralmente estudam-se mais os temas do que o texto de Amós. Essa abordagem

considera a justiça social apenas como um dos aspectos da mensagem do profeta.

Em contrapartida, esse artigo demonstrou que a justiça social não é um tema

marginalizado em Amós. Na verdade, a restauração dos direitos dos pobres constitui-se

a lente através da qual passa toda a teologia do profeta. Dessa forma, o pastor de Tecoa

convida-nos a rever as afirmativas teológicas que desconsideram os grandes problemas

sociais da humanidade. Amós desafia-nos fazer do pobre e humilhado o alicerce dos

nossos pressupostos teológicos.

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