A Trindade no Antigo Testamento1

Postado em 25 de outubro de 2018 por

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Luciano R. Peterlevitz

INTRODUÇÃO Há um grande debate sobre a doutrina da Trindade no Antigo Testamento. Os Pais da Igreja afirmaram categoricamente que o Deus de Israel é Trino. Desconsideraram assim a revelação progressiva. Outros teólogos, em contrapartida, defendem que a doutrina da Trindade inexiste no contexto veterotestamentário. Existe também a afirmação de que embora no Antigo Testamento Deus seja Trino, ali a doutrina da Trindade não é manifesta de maneira tão clara. Assim, ensinar essa doutrina tendo por fundamento o Antigo Testamento é cristianizar por demais o texto. É verdade que na antiga aliança não existe uma manifestação clara da Trindade. No entanto, podemos afirmar que a manifestação do Deus de Israel é plural. Muitos estudiosos até afirmam que essa pluralidade é apresentada porque originalmente o conceito de Deus surgiu num contexto politeísta. O pluralismo a respeito do divino apresenta-nos um resquício da crença politeísta.2 Mas prefiro acreditar que essa pluralidade está de acordo com a crença cristã na Trindade. Começaremos nossa discussão com Deuteronômio 6.4. O foco inicial é a palavra hebraica ehad “um”, “único”. Analisaremos também outros textos, para afirmamos que, apesar de Deus no Antigo Testamento ser Um, ele é plural, o que favorece a doutrina cristã da Trindade nos textos veterotestamentários.

  1. A UNICIDADE DE DEUS – DEUTERONÔMIO 6.4 Como conciliamos a fé num Deus único expressa no Antigo Testamento com a afirmação de que ele é o Deus Trino? Ora, antes de tudo, deve ser afirmado que crença cristã na Trindade não é a crença em três Deuses, mas a crença em três Pessoas que participam da natureza divina de maneira plena e integral. Assim, mesmo em Dt 6.4, onde lemos a afirmativa que Deus é único, podemos identificar o Deus Trino. Vejamos:

Shemá Israel YHWH Eloheinu YHWH ehad. “Javé nosso Deus Javé Um”

Atentemos-nos para a palavra “um’. Na língua hebraica existem duas palavras que expressam unidade:

1) ehad “único”, “um”: “enfatiza a unidade, embora reconheça diversidade dentro da unidade”.3

1 Artigo publicado em Revista da Bíblia. Rio de Janeiro: JUERP, ano XIX, no 55, 3o trimestre de 2009, p.15-21. 2 H.H. Rowley. A fé em Israel – Aspectos do pensamento do Antigo Testamento. São Paulo. Editora Teológica, 2003, p.73. 3 Herbert Wolff, em LAIRD, Harris, (editor), Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. Tradução Márcio Loureiro Redondo, Luiz Alberto Sayão, Carlos Osvaldo Pinto, São Paulo, Edições Vida Nova, 1998, p.47.

A Trindade no Antigo Testamento

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2) Yahid: também significa “único”, “um”, mas se refere a uma unidade simples (singular) ou absoluta. A palavra usada em Dt 6.4 é ehad! Sobre isso, Stanley Rosenthal afirma:

“A última palavra hebraica da Shema ‘Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é único’ (Dt 6.4) é echad, que, embora traduzido por ‘único’, é um substantivo coletivo – em outras palavras, um substantivo que, embora, denote unidade, a classifica, pois, representa uma unidade que contém várias unidades. Poderíamos citar um bom número de exemplos. Em Números 13.23 lemos que, os espias, pararam em Escol onde ‘cortaram um ramo de vide com um cacho de uvas’. A palavra hebraica que aqui aparece como ‘um’, em ‘um cacho’, novamente é echad; porque, como é evidente, esse único cacho de uvas consistia em muitas uvas.”

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Portanto, a palavra ehad seria uma alusão ao Deus único, mas que contém em si a diversidade de Pessoas.5

Vejamos ainda ouros usos da palavra ehad: Gênesis 2:24: Portanto, o homem deixa o seu pai e a sua mãe, e deve decompor-vos a sua mulher: e eles serão uma (ehad) carne. (Grifo do autor)

Êxodo 24:3: E Moisés chegou e disse ao povo todas as palavras do SENHOR, e todos os acórdãos: e todo o povo respondeu a uma (ehad) voz. (Grifo do autor).

Veja que nesses dois textos ehad é uma unidade na diversidade: uma carne (duas pessoas); uma voz (de muitas pessoas).

A título de exemplo, a palavra hebraica yahid é usada nos seguintes textos:

Jeremias 6: 26 – Ó filha do meu povo, cinge-te de saco, e revolve-te na cinza; pranteia como por um filho único (yahid), em pranto de grande amargura…(unidade simples).

Amós 8: 10 – …, e calva sobre toda cabeça; e farei que isso seja como o luto por um filho único (yahid), e seu fim como dia de amarguras…(unidade simples).

Provérbios 4: 3 – Quando eu era filho aos pés de meu pai, tenro e único (yahid) em estima diante de minha mãe…(unidade simples).

Gênesis 22: 2 – Prosseguiu Deus: Toma agora teu filho, o teu único (yahid) filho Isaque, a quem amas…(unidade simples).

É verdade que a palavra ehad também pode referir-se a uma unidade simples:

4 Stanley Rosenthal. A Tri-unidade de Deus no Velho Testamento. Editora Fiel. O autor translitera a palavra hebraica como echad, que eu translitero por ehad. 5 Para uma discussão pormenorizada da ehad, veja http://apologiajudaica.blogspot.com/2008/03/palavra- echad-dentro-do-contexto-no.html. Acessado em 29.09.08.

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Deuteronômio 17: 6 – “Pela boca de duas testemunhas, ou três testemunhas, aquele que merece a morte deve ser posto à morte; mas pela boca de uma (ehad) testemunha, ele não deve ser posto à morte.”

Eclesiastes 4: 8 – “Há apenas um (ehad), sem uma companhia; sim, ele nem tem filho…”. Vê-se, então, que a palavra ehad pode se referir a uma unidade coletiva e a uma unidade singular. Mas e quanto Dt 6.4? A palavra ehad significa unidade coletiva ou unidade singular? É verdade que o versículo enfatiza o fato de que há um só Deus, e “Israel deve a ele sua exclusiva lealdade (Dt 5;9; 6.5).”6 No entanto, outros pontos precisam ser considerados, para a afirmativa de que a palavra ehad alude a uma unidade na diversidade. Comecemos com uma explicação do nome Elohim.

  1. O NOME ELOHIM Elohim é a palavra hebraica que normalmente é traduzida em nossas Bíblias como “Deus”, e em alguns casos como “deuses”. Em Gn 1.1,26 a palavra hebraica está no plural, bem como os pronomes que a acompanham. Isso leva a teologia cristã a afirmar que o texto faz referência à Trindade (veja também Is 6.8a).

Muitos especialistas, no entanto, pensam que o nome Elohim é um plural majestático, pelo qual se quer enfatizar a grandeza do Deus de Israel. O “plural sem dúvida é um aumentativo de exaltação, frisando a majestade de Deus, e não a idéia de pluralidade de pessoas.”7

Entretanto, pode-se averiguar que uma plenitude plural é encontrada no Antigo Testamento com referência a Deus, o que indica a doutrina da Trindade.

Antonio Neves Mesquita afirma que não havia o uso do plural majestático na antiguidade.8 “Assim, se Moisés dizia, desçamos, vejamos, façamos, e outras, era porque mais de uma pessoa estava sendo envolvida no ato. Não havia, podemos dizer, tal uso na antiguidade; tudo que se diz, nesse sentido, é pura invenção moderna.”9 Esse mesmo estudioso diz que o pronome e o verbo no plural em Gn 1.27 indicam as três Pessoas da Trindade, pois está “de acordo com o teor geral da Bíblia de que as três pessoas da Santíssima Trindade tomaram parte na criação (Gn 1.2; João 1.1-5 e ref.).

10 Assim, “é mais provável que o significado seja de uma pluralidade de personalidade, visto que Deus e o Espírito de Deus aparecem em Gênesis 1.”

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Outros pensam que o termo Elohim é um superlativo. Sobre isso, afirma Botterweck: “Provavelmente o plural não significasse originalmente uma pluralidade, mas uma

6 Herbert Wolff, em LAIRD, Harris, (editor), Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p.48. 7 R. N. Champlim. O Antigo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo, Editora Candeia, 2000, p.09. 8 Antonio Neves Mesquita. A doutrina da Trindade no Velho Testamento. Rio de Janeiro, Editora Dois Irmãos, 1956, p.17. 9 Antonio Neves Mesquita. A doutrina da Trindade no Velho Testamento, p.18. 10 Antonio Neves de Mesquita. Estudos no livro de Gênesis, rio de Janeiro, Juerp, 1979, p.88. 11 Paul R. House. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Editora Vida, 2005, p.76-77.

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intensificação. Neste caso, ‘elohim poderia significar ‘grande’, ‘o mais alto’, e finalmente, ‘apenas’ Deus, isto é, Deus, em geral.”

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Além disso, outros estudiosos têm afirmado que uma das formas de se expressar o superlativo na língua hebraica é o uso do plural. Assim, para se dizer que El é fortíssimo (El significa ‘forte’) usar-se-ia o plural Elohim (‘fortes’). Essa seria a razão de o verbo estar no singular (“e disse”) e o sujeito no plural em Gn 1.26. Mas cabe afirmar que a teologia cristã tem interpretado o plural em Gn 1.26 como uma referência à Trindade. Agostinho assim procedeu.

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Mas, muito antes de Agostinho, o apóstolo João já havia afirmado que o Logos estava com Deus antes da criação, e que por Ele foram criadas todas as coisas (Jo 1.1-3)! Portanto, a Trindade é manifesta no Antigo Testamento pelo nome Elohim. Nas palavras de Walter A. Elwell, o “plural do nome de Deus (Elohim), bem como o uso dos pronomes (Gn 1.26; 11.7), e dos verbos (Gn 11.7; 35.7) no plural assim indicam.”14

Há, ainda, outras razões para pensarmos que o nome Elohim alude a uma manifestação plural de Deus no antigo Israel: a manifestação ‘o Anjo’, da ‘palavra’, e do ‘Espírito’. Esses três são identificados com o próprio Deus.

  1. O ANJO DO SENHOR No Antigo Testamento, o Anjo do Senhor é distinto de Deus, mas também é identificado com o próprio Deus. Ele aparece em Gn 16.7-13. As promessas feitas (v.10) claramente demonstram que o Anjo do Senhor não era um anjo qualquer. Em Gn 32.22-32 ‘o Anjo’ aparece para Jacó, e assim se identifica: “Eu sou o Deus de Betel” (v.13). Assim, ele se identifica com o Deus que se manifestou em Betel (Gn 28.18-22). Em Gn 48.15-16 essa idenficação é objetiva: “O Deus em cuja presença andaram meus pais Abraão e Isaque,

o Deus que me sustentou durante a minha vida até este dia, o Anjo que me tem livrado de todo mal, abençoe estes rapazes; seja neles chamado o meu nome e o nome de meus pais Abraão e Isaque; e cresçam em multidão no meio da terra.”

Outros textos poderiam ser citados (Êx 3.2, cf. Jz 6.11-24; Ml 3.1). Mas esses bastam para a afirmação de que o “Anjo do Senhor” no Antigo Testamento é Deus. É uma Pessoa distinta na divindade. Muitos estudiosos afirmam que essa identificação do Anjo do Senhor com o próprio Senhor é uma interpolação tardia no texto bíblico, feita para evitar uma descrição do Deus de Israel excessivamente antropomórfica.15

12 Botterweck, citado por Isaltino Gomes Coelho Filho. O Pentateuco e sua contemporaneidade. Rio de Janeiro: Juerp, 2000, p.30-31. 13 Agostinho. Cidade de Deus, VVI, VI. 14 Walter A. Elwell. Enciclopédia Histórica-Teológica da Igreja Cristã. Vol. 1. São Paulo, Vida Nova, 1988, p.442-443. 14 Ernst Jenni e Claus Westermann, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, Madrid, Ediciones Cristiandad, vol.1, 1978, p.1236.

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A meu ver, no entanto, o Anjo do Senhor é mais uma evidência de que a manifestação divina é plural. “Isso aponta para distinções pessoais dentro da Deidade.”

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É curioso que as aparições do ‘Anjo do Senhor’ terminaram após a encarnação de Cristo. Muita coincidência, não!? No Antigo Testamento, o Anjo do Senhor acompanhou Israel na caminhada pelo deserto (Ex 14.19; cf.23.20). O Novo Testamento diz que a Pedra que seguia Israel era Cristo (1Co 10.4).

  1. A PALAVRA Além do Anjo do Senhor, que no Antigo Testamento se apresenta como Deus, há outro elemento que contribui para pluralidade da manifestação do divino: a Palavra, participante da criação (Sl 33.6; 107.20).

No Sl 33.6 lemos: Os céus por sua palavra se fizeram,

e, pelo sopro (ruah) de sua boca, o exército deles.

H.J. Kraus diz que a palavra criativa do Senhor traz à existência os céus e a terra. “Há uma correspondência intrínseca entre o Espírito de Deus e o fôlego da vida procedente da boca de Deus, e a palavra de Deus com o sopro de sua boca (Is 11.4).”

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Mas a teologia cristã afirma que há muito mais do que uma correspondência entre Deus, o Espírito e a palavra. “A palavra não é simplesmente uma comunicação a respeito de Deus, nem o Espírito é um mero poder divino. São, pelo contrário, o próprio Deus em ação.”

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Mesquita afirma que os antigos rabinos acreditavam na divindade do Messias.19 Essa afirmação é feita a partir de uma interpretação do Sl 2.7 enquanto uma alusão ao Messias Filho de Deus, bem como a partir da identificação do Anjo do Senhor como sendo o próprio Senhor. Além disso, o fato de o Novo Testamento ser “escrito por judeus, é uma prova que eles acreditavam no Messias divino”, diz Mesquita.20 Oskar Skarsaune demonstrou veementemente que a cristologia do Logos Encarnado, encontrada em Jo 1.14, é oriundo não do mundo helênico, mas do mundo judaico.21 Isso significa afirmar que o judaísmo antigo interpretava a Palavra como mediadora da criação. Além disso, a crença judaica na Sabedoria como mediadora da criação nos textos apócrifos judaicos é tão parecida com a Trindade cristã, que quando os estudiosos procuraram um termo que explicasse seu papel – na relação com Deus único, e ao mesmo tempo externo a Ele – “viram-se obrigados a recorrer à terminologia trinitária”

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  1. O ESPÍRITO SANTO

16 Charles C. Ryrie. Teologia Básica ao alcance de todos. São Paulo, Mundo Cristão, 2004, p.60. 17 Wilf Hildebrandt. Teologia do Espírito de Deus no Antigo Testamento, p.59. 18 Walter A. Elwell. Enciclopédia Histórica-Teológica da Igreja Cristã. Vol. 1, p.443. 19 Antonio Neves Mesquita. A doutrina da Trindade no Velho Testamento, p.48. 20 Antonio Neves Mesquita. A doutrina da Trindade no Velho Testamento, p.48. 21 Oskar Skarsaune. À sombra do Templo – As influências do judaísmo no cristianismo primitivo. São Paulo, Editora Vida Nova, 2004, p.331-351. 22 Oskar Skarsaune. À sombra do Templo – As influências do judaísmo no cristianismo primitivo, p.339, em nota de rodapé.

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Lemos no Antigo Testamento lemos que o Espírito é Deus.

Vejamos Gn 1.2: “o Espírito pairava sobre a face as águas”. A palavra hebraica Espírito é ruah, que significa ‘vento’, espírito, ‘Espírito’. Alguns comentaristas pensam que Gn 1.2 deveria ser traduzido como “e um vento de Deus pairava…”. Mas outros textos bíblicos demonstram a participação do Espírito na criação (Is 63.10; Sl 33.6; Sl 104.30.). Wilf Hildebrandt afirma que o “Salmo 33.6 é uma reflexão de Gn 1 e assevera que o evento da criação foi resultado da palavra falada de Deus trazida à realidade pelo seu ruah.”

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Hildebrandt mostra que a frase ruah ’elohim (Espírito de Deus) “ocorre quinze vezes em hebraico e cinco vezes em aramaico. Ela nunca é traduzida como ‘um vento poderoso’ ou ‘um vento de Deus nestas ocorrências.”

24 Conclui-se assim que em Gn 1.2 o ruah é o Espírito de Deus, que também é agente na criação.

CONCLUSÃO Pudemos averiguar que a manifestação de Deus no Antigo Testamento é plural. Assim, sou levado a concluir que palavra ehad usada em Dt 6.4 alude a uma unidade na diversidade. Isso é evidenciado pelas seguintes idéias: o uso plural do nome de Deus; a associação do Anjo do Senhor e da Palavra Criadora com o próprio Deus; e o Espírito Criador. Mesmo que a palavra “Trindade” não apareça na Bíblia, o Deus do Antigo Testamento é Trino. A Trindade, portanto, é apresentada no Antigo Testamento, ainda que de forma incompleta.

Termino com as palavras de John Theodore Murller:

“Não afirmamos que haja no Antigo Testamento a mesma clareza e evidência de testemunhos referentes à Trindade que há em o Novo Testamento; todavia asseveramos que tanto se podem como se devem citar do Antigo Testamento alguns testemunhos para exposição da doutrina da Trindade, visto que assim sempre se revelou desde o começo, a fim de que a Igreja de todos os tempos o pudesse conhecer, adorar e bendizer (…) como as três pessoas distintas numa só essência.”25

23 Wilf Hildebrandt. Teologia do Espírito de Deus no Antigo Testamento. São Paulo, Editora Academia Cristã, 2004, p.35. 24 Wilf Hildebrandt. Teologia do Espírito de Deus no Antigo Testamento, p.51. 25 John Theodore Murller. Dogmática Cristã – Um manual sistemático dos ensinos bíblicos. Porto Alegre, Concórdia, 2004, p.166.

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