EXPOSIÇÃO DE GÊNESIS 1.1-2: A TEOLOGIA DA CRIAÇÃO E SUA RELEVÂNCIA PARA HOJE

Postado em 13 de agosto de 2020 por

Categorias: Pregações

Palestra do Pr Luciano R. Peterlevitz à Ordem dos Pastores Batista de São Paulo – Seção São Paulo, em 12.08.2020

Introdução

Essa palestra apresenta uma análise de Gênesis 1.1-2. A análise se valedo método hermenêutico histórico-gramatical, referenciado nos pressupostos da teologia reformada. 

Considerações iniciais acerca da narrativa da Criação (Gn 1.1 – 2.3)

Ao afirmar que Deus criou todas as coisas, Moisés queria inculcar a cosmovisão correta para os israelitas. Isso é muito importante para nós hoje, também. A cosmovisão é a nossa visão de mundo. Qual a nossa visão acerca da vida e do mundo? Qual a origem do Universo? Por que estamos aqui? Por que morremos? Por que vivemos? Por que existe sofrimento? Existe um padrão estabelecido por Deus para vivermos nossa vida nesse mundo? Essas e outras perguntas são respondidas em Gênesis 1.

Durante 400 anos Israel teve contato com as divindades egípcias. Os egípcios divinizavam os elementos da natureza. Alguns animais eram considerados divinos. Na mentalidade dos egípcios, os deuses eram responsáveis pela fecundidade da terra. Por exemplo: Osíris era o deus que fazia a vegetação brotar (as águas do Nilo eram consideradas o seu sangue); Hect, deus da ressurreição, era representado na mitologia egípcia na forma de uma rã; Apis, o deus touro, era símbolo da fertilidade; Ra, o deus sol, era considerado o soberano sobre toda a terra (o faraó era a personificação de Ra).

Moisés apresenta para os israelitas que o Deus dos seus pais (cf. Êx 3.15) é o Deus que criou os animais e natureza, e portanto, as divindades egípcias não eram nada, já que todos animais e todos os elementos da natureza foram criados por Elohim, o Deus único e verdadeiro.

Além do contato com a religião egípcia, os israelitas também certamente conheciam as narrativas cosmogônicas escritas na antiga região mesopotâmica. O mais famoso épico antigo, muito conhecido pelos assírios e babilônicos, foi descoberto pelos arqueólogos nas ruínas de Nínive. É chamado de EnumaElish[1]. De acordo com esse mito, a criação do mundo é resultado de uma briga de deuses. Houve uma luta entre Marduque e Tiamat; Marduque matou Tiamat e dividiu seu corpo ao meio: com uma metade do corpo fez o céu e com a outra metade fez a terra. Outro mito, a Epopeia de Atrahasis, afirmava que o ser humano foi criado para prestar serviço aos deuses; estes, então, degolaram um deus e misturam o seu sangue e sua carne com argila, formando assim sete varões e sete mulheres, os primeiros seres humanos da terra.  

Também é importante considerar que Israel caminhava rumo à terra prometida, onde os cananeus atribuíam a fertilidade da terra aos deuses (Baal e sua consorte Aserá).

Nesse cenário, Moisés ensina para os israelitas as verdades essenciais acerca de Deus e do mundo. A terra e os céus não são governados por deuses, mas sim por Elohim, o Deus Criador dos céus e da terra. O mundo não surgiu como resultado de uma luta de deuses (como sustentava a cosmogonia babilônica), mas sim como resultado da ação criadora do único Deus verdadeiro. 

É importante notar que a narrativa da criação tem como pano de fundo as jornadas de Israel pelo deserto rumo à terra prometida. O livro de Gênesis não foi escrito por alguém que estava no escritório com ar condicionado. Foi escrito por alguém que estava com os pés empoeiradas caminhando pelo deserto.

Moisés dirigiu sua palavra ao povo peregrino. Naquele deserto causticante, os israelitas deveriam saber que o Deus que os conduzia é o Deus criador dos céus e da terra. O Deus os libertou do Egito é o Deus que criou o mundo e toda humanidade, e também abençoou todas as coisas. O Deus que criou a vida do nada poderia lhes sustentar naquele deserto difícil.

Assim, o relato da criação (Gn 1.1- 2.3) não foi escrito em uma perspectiva científica, mas sim em uma perspectiva teológica e pastoral.

Essa é a principal afirmação de Gênesis 1.1 – 2.3: O Deus Criador é o Deus que libertou Israel do Egito, e portanto, Ele é Salvador e Provedor.

Quando os antigos hebreus olhavam para criação, eles conseguiam enxergar o Deus que está acima da criação, o Deus que salva, sustenta e guarda:

 1 Elevo os olhos para os montes: de onde me virá o socorro?
 2 O meu socorro vem do SENHOR, que fez o céu e a terra. (Salmo 121.1-2).

WalterBrueggemann observa que a narrativa da criação também é uma resposta a toda situação de desespero em que a humanidade se encontra hoje; os vários dilemas do homem contemporâneo (doenças, fome, desempregos, solidão, etc.) só podem ser resolvidos na presença do Deus Criador.[2]

No princípio, Deus

Conforme explica Sidney Greidanus, os pastores e os pregadores em geral precisam considerar um ponto crucial da hermenêutica bíblica: o foco das Escrituras é teocêntrico (foco centralizado em Deus).[3]Lamentavelmente o que vemos hoje é uma pregação antropocêntrica (foco no homem). Precisamos resgatar a pregação teocêntrica (e cristocêntrica).  O propósito dos autores bíblicos não é apresentar os eventos em si, mas o Deus que realiza os eventos segundo a Sua vontade Soberana para a glória do seu nome.

A narrativa de Genesis 1 é teocêntrica, ou seja, muito mais do que falar do mundo de Deus, o autor nos apresenta o Deus que criou mundo.

Em sua primeira página, a Bíblia apresenta Deus criando os céus e a terra. Em suas últimas páginas, a Escritura apresenta os novos céus e nova terra (Ap 21 – 22), também criados por Deus (Is 65.17). A Bíblia começa falando de uma ação de Deus (criação) termina falando de uma ação de Deus (segunda vinda de Jesus: Ap 22.20). Do começo ao fim da Bíblia, vemos Deus agindo e revelando-Se a Si mesmo.

Portanto, os hebreus recém-libertados do Egito precisavam ter uma visão correta acerca de Deus e acerca do mundo de Deus.

Os atributos invisíveis de Deus e o seu eterno poder claramente são reconhecidos pelas coisas criadas (Rm 1.20; Sl 19.1). A glória do Senhor está estampada nos céus (Sl 8.1).

Já no primeiro versículo da Bíblia (Gn 1.1), aprendemos as seguintes verdades sobre Deus:

Deus está antes da criação

“No princípio” traduz o hebraico bere’shit: preposição “em” (be) + substantivo re’shit, “começo, início”: “em princípio”. O bere’shit é o início de um processo ou o início de um período (Jr 26,1; 27,1; 28,1 e 49,34). Aqui, e em outras passagens, a palavra apresenta a ideia de que Deus está presente nesse início (veja Is 46.10; Pv 8.22; Jo 1.1-3).

A expressão “os céus e a terra” refere-se à totalidade da universo, tudo aquilo que existe na criação. A gramática hebraica antiga não tinha uma palavra para “universo”. Para se referir à totalidade da criação, os antigos hebreus utilizam os termos “céus e terra”.

Essa é a tradução do v.1: “No princípio, criou Deus os céus e a terra”.

Entretanto, uma segunda possiblidade de tradução é sugerida por alguns hebraístas, segundo os quais, a preposição hebraica (be), que está ligada ao substantivo re’shit’, deve ser sintaticamente traduzida “quando”, e, sendo assim, haveria uma relação de dependência sintática entre o verso 1 e o verso 2: “quando Deus começou a criar o céu e a terra, a terra estava sem forma e vazia…”. Se essa tradução for adotada, então Gn 1.1-2 não estaria afirmando a origem de todas as coisas (o mundo criado ex-nihilo, “do nada), mas sim, estaria descrevendo a criação como um processo em que Deus utiliza materiais pré-existentes, à semelhança do épico babilônico EnumaElish, em que Marduque criou a partir a terra e o céu com o corpo da deusa Tiamat.

Portanto, há duas possiblidades de tradução: “No princípio, criou Deus…” ou “quando Deus começou a criar…”. Como defende o estudioso alemão Gerhard von Rad, ambas as traduções são sintaticamente possíveis[4], mas a segunda tradução é teologicamente inadmissível.[5] Pois, conforma explica von Rad, Deus criou “os céus e a terra” segundo a sua vontade, e assim estabeleceu “um começo da subsequente existência”.[6] E, conforme já vimos, Genesis 1 repudia a ideia de que o mundo foi criado pelos deuses pagãos; diferente desses deuses que criam as coisas a partir de elementos já existentes, o Deus de Israel é poderoso para criar ex-nihilo (do nada).

Assim, a melhor tradução é aquele como se encontra em nossas versões: “No princípio, criou Deus os céus e a terra”. O v.1 apresenta o primeiro ato criador de Deus (nesse primeiro ato, a terra ainda estava “sem forma e vazia”, v.2), sendo seguido pelos outros atos criativos nos seis dias da criação (Gn 1.3-31). 

É importante notar que Deus está no processo da criação, e Deus está antes do processo da criação. “Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus” (Sl 90.2). As coisas criadas visíveis e temporais revelam o Deus  invisível e eterno (Rm 1.20). Antes de existir algo, existia Alguém. Deus é Eterno.

Diferente do materialismo filosófico, a Bíblia afirma que a matéria não é eterna. Só Deus é Eterno.

Um ponto precisa ser notado: tudo que tem um “começo” tem um “fim”. Há um centelha de escatologia no livro de Gênesis. No relato da Queda, ao apresentar a futura vitória do descendente da mulher sobre a serpente (Gn 3.15), o autor de Genesis já apresenta o conceito da consumação da redenção. O livro de Gênesis alimenta a expectativa de que a maldição lançada sobre a terra na ocasião da Queda seria removida através de um descendente da mulher (cf. Gn 5.29).  

Muito mais do que relatar o início da história, o que o autor faz aqui em Genesis é nos apresentar como será o final da história. No escathon (fim), o jardim do Eden voltará (Ap 2.7; 22.2). A maior preocupação do livro de Genesis não é mostrar como eram as coisas, mas apontar como serão as coisas um dia quando a redenção for consumada.

Os céus e terra passarão. Tudo passará. A nossa vida passará. A Bíblia não permite vivermos a filosofia do carpe diem (“aproveite o dia”, “aproveite o momento”), bastante difundida em nossa sociedade atual. O problema dessa filosofia é que ela ignora a eternidade futura. Precisamos viver intensamente o agora, mas sem perder de vista o eterno. Na medida que a vida vai passando, e tomamos consciência de sua brevidade, não podemos deixar de nos abrigar à sombra do Deus Eterno.

Deus é o responsável pela origem da criação

O universo não é resultado de uma explosão que teria ocorrido por acaso. A Universo é resultado da ação criativa do Deus Poderoso, Inteligente e Amoroso. “Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder, porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas.” (Ap 4.11).

O verbo hebraico bara’, “criar” (1.1, 21, 27; 2.3; 5.1,2), sempre é utilizado na Bíblia Hebraica tendo Deus como sujeito, e o conceito de creatioexnihilo (criação a partir do nada) é fortemente apresentado por esse verbo.[7] É verdade que Deus também utiliza materiais pré-existentes para criar. Por exemplo, o Senhor criou o homem fazendo uso de uma matéria prima, o barro. Entretanto, mesmo quando se utiliza de um material já existente, Deus pode criar algo completamente novo e espetacular: Ele pega um pouco de barro e o transforma em ’adam (humanidade). E isso só Deus pode fazer!

Em várias passagens, a raiz bara’ apresenta o conceito de “iniciar uma coisa nova”.[8] Veja Is 41.20; 48.7; 65.17 (veja também Sl 51.10; Jr 31.22). O sentido de “trazer à existência” está explícito em passagens como Is 43.1; Ez 21.30[35]; 28.13,15. Deus “chama à existência as coisas que não existem” (Rm 4.17; cf. 2Pe 3.5).

Só Deus pode criar. As coisas existem não por acaso, mas sim porque Deus as criou com um propósito.

Se somos resultado do acaso, e se somos guardados pelo acaso, então não há propósito em nada, a vida é um grande absurdo, somos os mais infelizes de todos os seres viventes, e os Titâs tem razão: “O acaso vai me proteger, enquanto eu estiver distraído”. Entretanto, não somos guardados pelo acaso, mas sim pelo Deus que fez o céu e terra (Sl 121.1-2).

Deus é distinto da criação

Os céus e a terra não são o corpo de Tiamat, conforme ensinava o EnumaElish. Os astros celestes (sol, lua e estrelas) não são corpos dos deuses, conforme acreditavam as antigas religiões pagãs. Diferente dessas antigas religiões orientais, a Bíblia afirma que Deus é completamente distinto da criação. Conforma von Rad: “A ideia de criação pela palavra preserva antes de tudo a mais radical distinção essencial entre Criador e criatura. A criação não pode ser nem mesmo remotamente considerada uma emanação de Deus… mas, é antes, um produto de sua vontade pessoal”.[9]

Diante de Gênesis 1.1, o panteísmo cai por terra. A crença de que “tudo é Deus” não se sustenta diante das Escrituras. Deus “é antes de tudo e tudo nele subsiste” (Cl 1.17), mas Ele não é tudo.

Deus é infinitamente maior do que a criação

O nome “Deus” é a tradução da palavra hebraica ’elohim. Esse substantivo é plural (a terminação im indica plural). Em outras passagens bíblicas, essa mesma palavra significa “deuses”, e em poucos textos tem o sentido de “anjos” (cf. Sl 8.5). O singularé ’Eloah, pouco utilizado no Antigo Testamento.

Existe um considerável esforço por parte dos teólogos para explicar o plural do nome de Deus. De fato, aqui em Gênesis 1 há uma centelha da doutrina da Trindade (o plural “façamos…à nossa imagem” do v.26 também indica isso). O v.2 apresenta o Espírito de Deus, e o prólogo do Evangelho de João afirma que o Logos é o meio pelo qual todas as coisas foram criadas (Jo 1.1-3). O Deus Trino criou todas as coisas. Entretanto, o nome ’Elohim não enfatiza a Trindade, mas sim a majestade de Deus. É aquilo que os estudiosos chamam de “plural majestático”. É uma forma de enfatizar a grandeza e o poder de Deus.

A raiz do substantivo ’Elohimé El, “forte, poderoso”. O plural do nome seria um superlativo, uma ênfase: fortíssimo. Ele é o Majestoso! Logo no primeiro verso da Bíblia somos convidados a nos prostrarmos diante desse Deus Majestoso e Soberano.

’Elohim é o Fortíssimo. A oração do profeta Jeremias expressa muito bem isso: “Ah! SENHOR Deus, eis que fizeste os céus e a terra com o teu grande poder e com o teu braço estendido; coisa alguma te é demasiadamente maravilhosa… tu és o grande, o poderoso Deus, cujo nome é o SENHOR dos Exércitos” (Jr 32.17-18).

Os seremos humano não têm superpoderes em si mesmos. Só Elohim é o “Deus Todo-Poderoso” (El Shadday, Gn 17.1). Ele “é o Deus supremo e o grande Rei acima de todos os deuses” (Sl 95.3). Ele é o “Deus Altíssimo, que possui os céus e a terra” (Gn 14.19). Ele é o “Deus dos céus, Deus grande e temível” (Ne 1.5).

Há uma crença muito comum, ensinada por algumas filosofias místicas, que diz o seguinte: existe uma força em cada um de nós, que é liberada quando repetimos algumas palavras chaves que expressam coisas boas. Quando me dirijo a “Deus” ou a qualquer outra divindade, repetindo algumas fórmulas mágicas, as más lembranças saem do meu consciente e as más energias são expulsas da minha vida.[10] A oração então é um mantra poderoso capaz de restaurar a paz e a harmonia.  Note bem: de acordo com esses ensinos, o poder está nas palavras, pois afinal, a “energia” flui em nós e a partir de nós. Lamentavelmente muitos evangélicos creem que a oração é algo parecido com isso. Em muitas igrejas, a oração se parece mais com um mantra do que com a oração conforme ensina nas Escrituras.

Não há forças em nós mesmos ou em nossas palavras. É importante que os pastores também entendam isso. Pois muitos líderes eclesiásticos insistem em repetir o brado do He-Men: “eu tenho a força”. Entretanto, não há super-homens ou super-mulheres. Há, sim, o Deus Grande e Poderoso, criador dos céus e da terra. Somos barro, frágeis, e estamos nas mãos poderosas do Deus Oleiro (Is 64.8).

Deus está sobre o caos

O v.2 apresenta um cenário de caos: a terra “estava sem forma e vazia”; “havia trevas”; as “águas” prevaleciam sobre tudo. Mas “o Espírito de Deus pairava sobre as águas”. Note bem: Deus está “sobre” o caos. Vamos analisar melhor esse v.2.

“A terra, porém, estava sem forma e vazia”.  Alguns teólogos pensam que o verbo “estava” hebr. hayetah, qal perfeito) deve ser traduzido como “tornou-se”: “a terra, porém, tornou-se sem forma e vazia”. O v.1 apresentaria a criação original, e o v.2 estaria dizendo que ela depois foi invadida pelas trevas, supostamente por causa da rebelião de Lúcifer e seus anjos. Por causa do pecado de Lúcifer, “a terra tornou-se sem forma e vazia”.

Entretanto, sintaticamente a frase“e a terra estava/era (hebr. hayetah) sem forma e vazia” é parecida com aquela de Jonas 3.3: “E Nínive era (hebr.hayetah) uma grande cidade”. Descreve-se, então, o estado da terra antes das ações criativas de Deus nos sete dias apresentados em 1.3 – 31.

A “terra” (hebr. ’erets), aqui, não é Planeta Terra, mas sim a “porção seca”, o solo onde nascem as plantas (v.9-13). A expressão “sem forma e vazia” (hebr.  tohuwabohu) é uma hendíadis (um conceito apresentado por dois substantivos). Descreve um lugar improdutivo, inabitado, deserto, sem vida, um lugar impróprio para a habitação (cf. Is 45.18). O que lemos aqui é um cenário de desolação total onde é impossível haver vida sobre a terra. A expressão hebraica tohuwabohu (“sem forma e vazia”) é utilizada em Jr 4.23 e Is 34.11. Em ambas as passagens, a ideia é de devastação causada pelo juízo divino.

“e o Espírito de Deus”; “e um vento impetuoso” (Bíblia Vozes e Pastoral); “um sopro de Deus” (BJ). Essa mesma expressão ocorre outras três vezes no Pentateuco: Gn 41.38; Êx 31.3; 35.31. Nestas três passagens, a expressão ruah ’elohim só pode significar “Espírito de Deus” (em Gn 41.38, também poderia ser traduzido como “espírito dos deuses”). 

Não podemos perder de vista o paralelismo das frases:

“havia trevas sobre a face do abismo,

e o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas”.

As expressões “face do abismo” e “face das águas” são paralelas. O “abismo” (hebr. tehom) é o “oceano”, as águas primevas (Sl 104.6).

“e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas”. A questão é: quem domina? As trevas que estão “sobre a face do abismo”, ou o Espírito que paira “sobre a face das águas”? Resposta: o Espírito. As “trevas” só estão lá. Mas não fazem nada. No hebraico, a sentença é nominal, sem verbo: “trevas sobre a face do abismo” (o verbo “haver” está implícito). Não há nenhuma ação das trevas. Já a segunda frase é diferente. O Espírito de Deus exerce uma ação: Ele “pairava”. O verbo rahap, “pairar”, transmite a imagem de uma águia exercendo cuidado sobre seus filhotes (Dt 32.11). O Espírito de Deus poderosamente paira sobre o caos. “Embora o narrador não explique a existência das trevas ou do abismo que veio a ser o mar, ele deixa claro que Deus o limita e o controla”.[11]

Curiosamente o texto não fala da criação das trevas. Elas já estavam lá, no começo. Entretanto, as trevas estão debaixo do domínio do Espírito de Deus. Essa é uma afirmativa muito importante da narrativa da criação. Não existe uma luta entre Deus e as forças do mal. O que existe é só o poder de Deus sobre as forças do mal. Conforme lemos no v.3, basta uma palavra de Deus para surgir a luz e as trevas recuarem.  No v.5, o Soberano dá nome às trevas, o que denota a sua autoridade sobre elas. No v.21, lemos que até mesmo os pavorosos monstros marinhos foram criados por Deus, e, portanto, estão debaixo do seu domínio.

Não há um dualismo, uma medição de forças entre Deus e o diabo.

É preciso notar também que o verbo hebraico merahepet(“pairava”)está no particípio, que sugere uma ação contínua.Nem por um momento, o Espírito deixou de pairar sobre as águas agitadas. Diante dessa afirmação, o deísmo caí por terra. O deísmo afirma que Deus é o Relojoeiro que criou o relógio (o mundo), deu cordas nele (equipou-o com as leis da natureza), e depois o abandonou. Mas, de acordo com a Bíblia, o Deus que criou o Relógio mantém o relógio funcionando (Hb 1.3). Ele renova a pilha do relógio. O Espírito que controlava as trevas, agora renova todas as coisas na terra: “Envias o teu Espírito, eles são criados, e, assim, renovas a face da terra” Sl 104.30).

Conclusão

Como pregadores, temos a árdua tarefa de ensinar todo o conselho de Deus para nossa congregação, e isso incluí ensinar para o nosso povo a teologia da criação conforme apresentada em Gênesis 1. Que o Senhor nos ajude nessa tarefa. 

Anunciemos oDeus que está antes da criação, o Deus que é o responsável pela origem de toda criação, o Deus que é distinto da criação, o Deus que é infinitamente maior do que a criação, o Deus que está acima do caos.

Louvado seja o Senhor Criador dos céus e da terra!


[1] O nome do poema provém das primeiras palavras da primeira linha: EnumaElish, “Quando no alto”.

[2] Walter Brueggemann, Genesis: Interpretation: A Bible Commentary for Teaching and Preaching, p. 25.

[3] Sidney Greidanus, O pregador contemporâneo e o texto antigo: interpretando e pregando literatura bíblica (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), p. 142-148.

[4] Deve se notar, porém, que a palavra bere’shit ocorre em outras quatro passagens da Bíblia Hebraica, todas elas no livro de Jeremias (Jr 26,1; 27,1; 28,1 e 49,34), e aparentemente nenhuma dessas passagens aceita a tradução “quando” para a preposição que antecede o substantivo.

[5] Gerhard von Rad, Genesis (Filadélfia: Westminster, 1972), p. 48.

[6] Gerhard von Rad, Genesis, p. 48.

[7] Gerhard von Rad, Genesis, p. 49.

[8] DITAT, p. 212.

[9] Gerhard von Rad, Genesis, p. 49-50.

[10] É o que ensina, por exemplo, a prática da Hoʻoponopono.

[11] Bruce K. Waltke, Gênesis, p. 80.