Os bem-aventurados (Parte 1)
Pr Luciano R. Peterlevitz – Igreja Batista Bela Vista, 28.07.2019
TEXTO: Salmo 1.1.
Introdução
Na Bíblia Hebraica, o livro dos Salmos é chamado detehilim, “louvores”. Salmos, em nossas Bíblias, procede da Septuaginta (tradução grega), Psalmos, um “cântico acompanhado por instrumentos de corda”. Outra versão da Septuaginta intitulou o livro de “Saltério” (grego Psaltérion). Portanto, Salmos são louvores. O Saltério era o hinário dos hebreus do Antigo Testamento.
Salmos também são orações. É o que lemos no Salmo 72.20.
Assim, podemos dizer que Salmos são louvores e orações.
Os dois primeiros Salmos estão interligados. O Salmo 1 se abre com a palavra “bem-aventurado” (Sl 1.1), e o Salmo 2 se encerra com essa mesma palavra (Sl 2.12b). O início do Salmo 1 se reencontra no final do Salmo 2. Portanto, há um tipo de unidade entre os Salmos 1 e 2.
O Salmo 1 é um salmo de instrução. A base principal desse poema é a “lei”, a torah (a “instrução” do Senhor). Apresentam-se dois caminhos: o caminho dos bem-aventurados (os justos) e o caminho dos ímpios. Os ímpios são aqueles que desprezam a instrução do Senhor. Enquanto que os bem-aventurados são aqueles que andam nos caminhos do Senhor, e amam a sua lei.
O Salmo 2 é o salmo do Messias. Apresenta a supremacia do reinado do Filho de Deus.
Estes dois Salmos iniciais são o prólogo de todo o Livro dos Salmos. São a porta de entrada do edifício do Livro dos Salmos. Quem entra por este grande edifício (Livro dos Salmos), necessariamente precisa cruzar pelo portal da instrução de Javé (Salmo 1) e pelo portal do Filho de Deus (Salmo 2).Salmos são louvores e orações. Mas antes de louvar e orar, é preciso ouvir a instrução do Senhor e se refugiar em Cristo Jesus.
Quem louva e ora para Deus, nos Salmo 3 – 150? São os bem-aventurados, apresentados nos Salmos 1 e 2 (Sl 1.1 e Sl 2.12b). Os bem-aventurados são aqueles que pautam sua vida pela Palavra de Deus (Salmo 1) e se refugiam no Filho de Deus (Salmo 2). Não é possível louvar e orar, sem ouvir e praticar a Palavra de Deus e sem relacionar-se pessoalmente com Cristo Jesus.
Estrutura do Salmo 1
O Salmo 1 está estruturado em três estrofes. Nelas, condensam-se temas mais específicos acerca do justo e do ímpio.
1ª estrofe – v.1-3: os bem-aventurados. A pessoa bem-aventurada é apresentada por suas ações, na verdade, por aquilo que ela não faz (v.1) e por aquilo que faz (v.2). Ao final da estrofe, essa pessoa é comparada à árvore plantada junto aos ribeiros de água (v.3).
2ª estrofe – v.4-5: os ímpios. A figura do ímpio é contraposta à do justo. O ímpio é como palha (v.4), e será finalmente separado do justo (v.5).
3ª estrofe – v.6: o destino final dos justos e o destino final dos ímpios. A sorte final do ímpio e do justo já está traçada. Há um “caminho” diferente para um deles.
Na mensagem de hoje, vamos analisar o verso 1, o início da primeira estrofe, onde se apresenta o bem-aventurado e se diz o que ele não faz.
1. Quem são os bem-aventurados
“Bem-aventurado” é a tradução do hebraico ’ashre. Na verdade, trate-se de um plural, que poderia ser traduzido mais ou menos assim: “oh felicidades do”. O termo hebraico procede de uma raiz verbal que literalmente significa “ir”, sugerindo o sentido de “andar”, “dar passos”, “marchar”. “Bem-aventurado” não evoca exatamente a ideia de felicidade como um sentimento, mas o modo como Deus nos considera. Esta pessoa, bem aventurada, está em marcha, rumo ao Senhor e sua vontade. Ela está na direção contrária do ímpio, como se percebe nas frases desse verso 1. Portanto, o que é destacado pela palavra ’ashre não é a felicidade em si, mas a marcha que conduz a ela.
No livro dos Salmos, o substantivo ’ashre sempre apresenta alguém que pratica alguma ação em relação a Javé, ou alguém que é alvo da ação de Javé. Os Salmos fazem várias afirmações sobre os bem-aventurados:
Bem-aventurado aquele que não anda no conselho dos ímpios: Sl 1.1.
Bem-aventurado aquele que se refugia em Deus: Sl 2.12; 34.8;
Bem-aventurado aquele que confia em Deus: Sl 40.4; 84.12.
Bem-aventurado aquele que tem o Deus de Jacó por seu auxílio, cuja esperança está no Senhor, seu Deus: Sl 146.5.
Bem-aventurado aquele que é escolhido por Javé e se aproxima dele: Sl 65.4; 84.4.
Bem-aventurado aquele que encontra forças em Deus: Sl 84.5
Bem-aventurado aquele cujo Deus é Javé: Sl 33.12; 144.15.
Bem-aventurado aquele que é repreendido por Javé e ensinado por ele: Sl 94.12.
Bem-aventurado aquele que teme a Javé: Sl 112.1; 128.1.
Etc…
Com se observa, os bem-aventurados (felizes) são aqueles que andam nos caminhos do Senhor. O bem-aventurado não é alguém que está buscando a felicidade, mas é alguém que está marchando rumo à vontade de Deus. O alvo maior da vida do bem-aventurado não é buscar a felicidade, mas sim andar nos caminhos do Senhor, e assim, consequentemente, ele encontrará a felicidade. A felicidade não é a razão, mas o efeito. O propósito da vida do bem-aventurado é buscar a Deus, e o resultado disso é a sua felicidade. A felicidade é o resultado de escolhas corretas. E as escolhas corretas são aquelas pautadas na vontade de Deus.
Não procure ser feliz, mas procure uma vida santa, pois é nesse tipo de vida que a felicidade realmente se encontra, uma vida debaixo da graça de Deus.[1]Uma oração puritana diz: “Não podes tornar-me feliz contigo se antes não me tornares como tu és”.[2] Para ter a felicidade de Jesus, é preciso ter o caráter de Jesus.
Portanto, a felicidade ensinada na Bíblia não está condicionada ao ter, mas ao ser. A questão principal não é a posição que você ocupa na sociedade, ou aquilo que você possui, mas sim, quem você é diante de Deus.
2. O que os bem-aventurados não fazem
O bem-aventurado é definido por suas três ações:
não anda no conselho dos ímpios,
no caminho dos pecadores não para,
no assento dos escarnecedores não se assenta.
São três frases negativas. O bem-aventurado é aquele que “não anda…”, “não para”, “não se asseta”. Da mesma forma, oito dos dez mandamentos são sentenças negativas (Êx 20). Somos como crianças. Constantemente precisamos ouvir a advertência do Espírito Santo, que diz: “não faça isso, não faça aquilo”.
O bem-aventurado não segue o slogan do mundo que diz: “você pode fazer tudo o que quiser”.
A pessoa bem-aventurada é muito diferente dos “ímpios”, dos “pecadores” e dos “escarnecedores”. Estas três palavras, “ímpios”, “pecadores” e “escarnecedores” descrevem o ser humano longe de Deus.
Os “ímpios”. São apresentados como aqueles que tem um comportamento contrário não somente ao caráter de Deus, mas também à sociedade. Os ímpios ofendem a Deus e destroem o próximo.
Os “pecadores”. Os “pecadores” traduz o hebraico hatta’im, adjetivo que procede da raiz verbal hata’, cujo sentido básico é “errar um alvo”. Os hatta’im são aqueles que erram o alvo que Deus tem para o ser humano; eles se desviam do padrão de justiça e santidade estabelecido por Deus. No Antigo Testamento, refere-se especificamente àqueles pecadores que obstinadamente seguem por caminhos tortuosos, e por isso, estão sujeitos à disciplina do Deus Santo. Eles insistem em andar de acordo com a dureza do seus corações malignos (Jr 16.12; cf. Jr 16.10-13). O problema não é o erro. O problema é insistir no erro. O problema não é erra o alvo, mas sim continuar errando o alvo, mesmo depois de enxergar claramente qual é o alvo a ser perseguido.
Os “escarnecedores”. São os zombadores. Eles fazem piada da cruz. Brincam com o Deus que é fogo consumidor. Brincar com fogo é perigoso!
Observemos agora a digressão das frases do v.1: andar, parar e assentar-se. O hebraico pode ser traduzido da seguinte maneira:
nãoanda no conselho dos ímpios,
no caminho dos pecadores não para,
no assento dos escarnecedores não se assenta.
Observemos a imagem do ser humano sem Deus: ele anda, para e finalmente se assenta. Prestemos atenção também nos três substantivos: “conselho”, “caminho” e “assento”.
O “conselho” (‘esah) é o “propósito”, o “desígnio”. Trata-se dos valores e dos pensamentos de um indivíduo.
O “caminho” (derek) é a vereda da vida. Ocurso da vida. A conduta.
O “assento” (moshab) é um pertencimento.
Primeiro, vem o “conselho”, um conjunto de valores que propaga a impiedade; depois, como resultado do conselho, vem o “caminho”, o estilo de vida e o curso de vida do pecador obstinado; e por fim, vem o “assento”, um pertencimento ao grupo daqueles que blasfemam contra Deus. Primeiro a pessoa anda, depois ela para, e por fim ela se assenta. E assim, o homem sem Deus vai se tornando cada vez lastimável. Primeiro ele é “ímpio”; sua vida desagrada a Deus. Depois, ele é “pecador” (insiste em permanecer no erro). Finalmente, ele se torna um “escarnecedor”, um zombador. Alexander Pope, citado por Waltke e Houston, explica muito bem a digressão da impiedade apresentada nesse v.1: “Vício é um monstro de aspecto tão horroroso que para se odiar precisa apenas ser visto.Entretanto, se visto muito frequentemente, torna-se demasiado familiar, e, então, primeiramente toleramos, em seguida sentimos pena e, finalmente, o aprovamos.”[3]
Talvez você já ouviu da ilustração do sapo na panela. O sapo de adapta à temperatura da água, e não pula para fora da panela. A água ferve, sem ele perceber. Quando a água começa a ferver, o sapo tenta pular fora, mas é tarde. Já está ferido pela água fervente. O que matou o sapo não foi a água fervente, mas sim sua habituação com a mudança da temperatura da água.
Pule fora daquilo que não agrada a Deus. Você precisa evitar ou se livrar de qualquer coisa que destrua o seu relacionamento com Deus.
Conclusão
O bem-aventurado é aquele que não acredita nos valores dos ímpios, não segue o estilo de vida dos pecadores obstinados, e não pertence à classe dos zombadores.
O bem-aventurado não faz aquilo que “todo mundo” está fazendo. Não precisamos fazer o que todo mundo faz. Não devemos fazer o que todo mundo faz. Devemos fazer aquilo que Deus quer que façamos. Se estamos em Cristo, somos novas criaturas. Portanto, não fazemos o que todo mundo faz simplesmente porque não somos como todo mundo. Somos bem-aventurados!
O caminho correto não é o mais fácil. Não é o
caminho mais curto. Mas é o caminho que conduz à vida
plena.
[1]Elyse Fitzpatrick, Ídolos do coração: aprendendo a desejar somente a Deus, São Paulo: Vida Nova, 2017, p. 97.
[2]Elyse Fitzpatrick, Ídolos do coração, p. 97.
[3]Bruce K. Waltke et. al., Os salmos como adoração cristã: um comentário histórico, São Paulo: Shedd Publicações, 2015, p. 148.