AS OITO VISÕES DE ZACARIAS – BREVE ANÁLISE

Postado em 25 de outubro de 2018 por

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ISSN 1980-9824 | Volume VI – Ano 6 | Agosto de 2011 www.revistaancora.com.br

 

Luciano R. Peterlevitz

Resumo As oito visões narradas em Zacarias 1-6 têm como mediação hermenêutica o Império Persa. O texto zacariano vale-se de relatos visionários que dialogam com o dito profético, prenunciando assim o gênero apocalíptico. Tais visões encenam a chegada de um novo tempo que se iniciaria com a reconstrução da cidade de Jerusalém e do templo. Mas tal esperança só é possível mediante a queda do imperialismo persa. Evidencia-se, portanto, que a escatologia de Zacarias afirma uma intervenção de Deus contra o imperialismo opressor vigente no pós-exílio.

Palavras-chave: Zacarias – visões – dito profético – imperialismo – Pérsia – escatologia.

Abstract

Eight visions are narrated in Zechariah 1-6, and have as hermeneutic mediation the Persian Empire. Zechariah’ text uses the gender visionaries who do dialogue with the prophetic language thereby announcing the apocalyptic genre. Such views exhibit the arrival of a new era that would begin with the rebuilding of Jerusalem and of temple. But the hope is possible only through the fall of the Persian imperialism. It is evident therefore that the eschatology of Zechariah says an intervention of God against the oppressive imperialist force in the post-exile. Key-words: Zechariah – visions – prophetic language – imperialism – Persia – eschatology.

∗ Luciano Robson Peterlevitz é Coordenador Acadêmico do curso de Teologia no Seminário Batista de Campinas, onde também é professor de Antigo Testamento. Mestre e Doutorando em Ciências da Religião, na área de Bíblia, pela Universidade Metodista de São Paulo. É pastor na Missão Batista Vida Nova, em Nova Odessa/SP. E-mail: lpeterlevitz@gmail.com.

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Introdução Vários comentaristas classificam o texto de Zacarias como apocalíptico. Mas as pesquisas recentes tem demonstrado que o livro de Daniel é o único texto apocalíptico do Antigo Testamento. Evidenciarei neste estudo que o texto de Zacarias, pelo menos em suas visões narradas nos capítulos 1-6, se aproxima do gênero dos demais livros proféticos. Pois os relatos visionários de Zacarias são permeados por ditos proféticos, bem característicos na literatura profética, e ausentam-se na literatura apocalíptica de Daniel. Evitarei uma leitura futurista do texto, que menospreze a possibilidade de lermos as visões tendo como referencial hermenêutico o império persa. Demonstrarei a expectativa do profeta por um cumprimento imediato das promessas sugeridas pelas visões. Pela leitura das visões de Zacarias perceberemos que o escathon não era a esperança pela interrupção de Deus na história num futuro longínquo, mas sim a possibilidade da ação de Deus a partir da situação vivencial na qual o profeta estava inserido. Por isso, a esperança messiânica em Zc 1-6 está intrinsecamente relacionada à situação histórica do pós-exílio.

O contexto das visões As oito visões de Zacarias são muito bem datadas, em 1.7: “vinte e quatro dias do décimo primeiro mês, o mês de sebate, no segundo ano de Dario”. Trata-se de meados de fevereiro de 519 a.C. Algumas décadas antes, em 539 a.C., o rei dos medo-persas, Ciro, assenhorou-se da Babilônia. Os persas eram, a partir de então, os novos donos do mundo antigo. O filho de Ciro, Cambises, ampliou o Império Persa, em 525 a.C., quando anexou o Egito à Pérsia. Assim, todo o Antigo Oriente Médio estava submetido à soberania de um grande rei.

Neste cenário, Judá passou a ser somente mais um dos pequenos Estados anexados ao grande Império Persa.

Os persas instituíram uma forma de governo diferente daquela dos seus antecessores (Assíria e Babilônia). Ciro instalou uma nova maneira de governar, caracterizada pela arrecadação de tributos e pela autonomia das regiões dominadas. Por isso ele permitiu a volta dos judeus exilados para Judá e a reconstrução do Templo de Jerusalém.

Mas essa tolerância religiosa do Império Persa para com os povos dominados era apenas uma camuflagem de sua opressão. 1 “Ao patrocinar o culto local, esperava conseguir algum consenso, pelo menos dos sacerdotes, para a sua administração.”

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Dessa forma, o império poderia ser administrado de maneira melhor e mais duradoura. Havia um poder central que administrava o sistema de tributos recolhidos mediante os sátrapas instalados em cada região do Império Persa. “Ações autônomas das partes que formavam o império não eram permitidas e, onde aparecessem, eram duramente reprimidas.”3

1 Veja TÜNNERMANN, Rudi. As reformas de Neemias: A reconstrução de Jerusalém e reorganização de Judá por Neemias no período persa. São Leopoldo/São Paulo: Sinodal /Paulus, 2001, p.13-30 (Teses e Dissertações; 17). 2 SOLANO ROSSI, Luiz Alexandre. Como ler o livro de Zacarias: O profeta da reconstrução. São Paulo: Paulus, 2000, p.8 (Série “Como Ler a Bíblia”). 3 SOLANO ROSSI, Luiz Alexandre. Como ler o livro de Zacarias, p.9.

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Quando Cambises morreu sem deixar filhos, eclodiu-se uma crise no Império Persa. “Seguiram-se dois anos (522-521) de lutas internas pela sucessão. Digladiaram-se diversos pretendentes. O Império tendia ao esfacelamento. Impôs-se Dario I (522-486) que organizou e consolidou a dominação persa.”

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Será que as visões de Zacarias respirariam ainda o ar das desavenças que se instalaram em meio ao Império Persa, dois anos antes de Zacarias, encontrando nisso uma possibilidade de revolta contra esse imperialismo?5 Ou a consolidação do Império Persa gerou uma grande crise no povo judaíta dominado, de modo que Zacarias visa reanimá- los? A meu ver, essa última pergunta deve ser respondida positivamente.

Assim, o pano de funda das oito visões de Zacarias são os pós-distúrbios principiados depois da morte de Cambises (522 a.C.), e a recente reorganização do Império por Dario, em 520-519 a.C. Portanto, o texto de Zacarias tem o contexto persa como mediação hermenêutica.6 A profecia zacariana localiza-se no contexto do pós-exílio. Há atualmente um grande debate sobre esse período.7 Entendê-lo é fundamental para compreendermos as visões de Zacarias.

As visões – O gênero literário e as delimitações do texto Por uma simples leitura de Zc 1- 6 nota-se que o texto é perpassado por oito visões. As narrativas visionárias formam um tipo de literatura veterotestamentária. Há um grande debate sobre esse gênero literário.8 Faremos aqui algumas considerações literárias sobre as visões de Zacarias. A primeira visão (1.7-17) é antecipada pela fórmula profética “a palavra de Javé foi dirigida ao profeta Zacarias” (v.7). Esta expressão é bem comum nos livros proféticos. Aqui em Zacarias ela funciona como uma introdução geral às visões. O gênero visionário inicia-se em 1.8, com o verbo hebraico ra’ah “ver”. É comum os relatos visionários principiarem-se por esse verbo, sendo este seguido pela palavra vehineh “eis”, que aponta à visão.

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A primeira visão inicia-se com o verbo ra’iti “vi”, qal perfeito de ra’ah “ver”. A segunda e terceira visões iniciam-se de forma parecida: “Levantei os olhos e vi” (2.1,5), e o verbo ra’ah está no qal imperfeito. Mas, na segunda visão, o mesmo verbo aparece no hifil (2.3), “(ele) me fez ver”. Essa mesma forma verbal aparece na quarta visão

4 SCHWANTES, Milton. Ageu. Petrópolis/São Bernardo do Campo/São Leopoldo: Vozes/Imprensa Metodista/Sinodal, 1986, p.10. 5 Milton Schwantes responde afirmativamente a essa questão, a partir de uma análise de Ageu. Veja SCHWANTES, Milton. Ageu, p.12-13. 6 Portanto, vejo com reservas a opinião de Gehard von Groningen, que chama de “críticos” aqueles que pensam que Ageu e Zacarias anunciaram um futuro de esperança para os remanescentes judaítas do pós- exílio frente ao império persa. Veja GRONINGEN, Gerhard van. Revelação Messiânica no Antigo Testamento: A origem divina do conceito messiânico e o seu desdobramento progressivo. 2a edição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p.829. 7 Veja GRABBE, Lester L. (editor). Leading Captivity Captive. ‘The Exile’ as History and Ideology. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1998, 161p. 8 BEHRENS, Achim. Prophetische Visionsschilderungen im Alten Testament: Sprachliche Eigenarten, Funktionen und Geschichte einer Gattung. Ugarit-Verlag, 2000, 413p. (AOAT 292). A resenha desse texto se encontra em MCLAUGHLIN, John L. “Recensiones”. In: Bíblica – A Quarterly Review. Roma: Pontifical Biblical Institude Rome, volume 17, fascículo 04, 2004, p.565-569. 9 LONG, Burke O. “Narrativas visionárias entre os profetas”. In: Profetismo – Coletânea de Estudos. São Leopoldo: Sinodal, 1985, p.48-49.

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(3.1). Na quinta visão o profeta é persuadido pelo anjo a ver (4.1), e, à semelhança da primeira visão, o verbo ra’ah aparece no qal perfeito (4.2). Por fim, a sexta, sétima e oitava visões iniciam-se de forma parecida com a segunda e com a terceira, “levantei meus olhos e vi” (5.1; 6.1), sendo que a sétima é também parecida, em seu início, com a quinta (5.5; cf.4.1).

Percebe-se, portanto, que a narrativa de Zacarias é visionária. Mas, no caso do nosso profeta, o relato visionário tem por objetivo legitimar a mensagem profética, como notaremos nas oito visões de Zacarias. Há uma interação literária entre as visões e os ditos proféticos. Vejamos:

A oitava visão (6.1-8) relaciona-se à cena relatada nos v.9-15, e com a declaração profética ali promulgada, pois a temática do v.8 é reencontrada no v.15! Ambos os versos tratam da volta da comunidade dispersa. A quinta visão (4.1-6a, 10b-11, 13-14) é intercalada por dois ditos (4.6b-7 + v.8-10a). Muitos estudiosos afirmam que os ditos proféticos nos v.6b-10a, 12 são interpolações posteriores. Entretanto, parece-me que precisamos interpretá-los à luz do relato visionário, pois tais ditos aludem à reconstrução do templo por Zorobabel, e o templo é o espaço do sacerdócio de Josué. Sendo assim, há um diálogo entre a função do governador davídico (Zorobabel) e a função sacerdotal (Josué), conforme o relato visionário (4.1-6a, 10b-11, 13-14).

Na quarta visão (3.1-10) encontramos alguns ditos proféticos, principalmente nos v.7+v.8-9+v.10. Há uma inter-relação entre os v.1-10. A purificação aludida no relato visionário (v.1-6) resulta na retomada da função sacerdotal, exposta condicionalmente no v.7. O fim do v.7 (“estar de pé”) remete-nos aos v.3-4, e também ao v.8, onde se diz que alguns “estavam assentados” diante de Josué, dando a entender que Josué já estava de pé! A última frase do v.8, em seu início, é bem parecida com o início da primeira frase do v.9 (“Porque eis…”).

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E o v.10 deve ser interpretado à luz da última frase do v.9, pois a purificação exposta aqui resulta na tranqüilidade aludida lá.

Da mesma forma, a terceira visão (2.1-4 – Texto Massorético: 5-8) é seguida por um oráculo (v.5) que, a meu ver, explica o sentido da visão. Pois a reconstrução de Jerusalém aludida na visão (v.1-4) manifesta a glória de Javé (v.5)! Seguem-se os v.6- 13 (Texto Massorético: 10-17), que mantêm certa relação com os v.1-5. Essa relação evidencia-se entre o v.5 e v.8 (a “glória”). Os v.10-12 dizem respeito à visão, pois, à semelhança do relato visionário, esses versos tematizam Jerusalém.

Por fim, chegamos à primeira visão (v.8-11). O v.7 é uma introdução histórica às oito visões. A visão propriamente dita é relatada nos v.8-11. Na sequência observa-se uma série de ditos proféticos (v.13 +v.14-16+v.17). A partir do v.12 a visão não mais é mencionada. Nesse v.12 encontramos uma pergunta, que parece ter sido suscitada por causa da ação dos cavalos, no v.11. Essa pergunta também suscita a resposta de Javé no v.13. O v.12, pois, marca a virada entre a visão e os ditos. O v.13 é um resumo da resposta de Javé, que será explanada no conjunto de ditos nos v.14-15+v.16+v.17. Esse conjunto deve ser interpretado à luz do relato visionário. Isso porque a tranquilidade evidenciada na visão (v.11) é objeto da ira do Senhor (v.15)! Assim, as “palavras boas, consoladoras” (v.13),relatadas nos v.13-17, surgem como um contraponto/questionamento à visão!

10 Por isso questiono a Bíblia de Jerusalém, que separou os v.8, 9b e 10 dos v.1-7, 9a.

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Evidenciamos, assim, que as visões zacarianas são permeadas por ditos proféticos. Visões e ditos aglutinam-se. Tentei delimitar literariamente os relatos visionários e os ditos proféticos. Os relatos visionários formam um gênero literário que objetiva conferir sentido aos ditos. Portanto, o gênero literário de Zacarias 1-6 não é o apocalíptico, ainda que tenha algumas características apocalípticas.11 Pois o texto de Zacarias apresenta uma das grandes características dos profetas clássicos: o dito profético.

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Outras serão as características da apocalíptica.13 Então, parece-nos correto afirmar que o texto zacariano não é ainda um apocalipse, sendo mais bem conceituado como parte da gênese apocalíptica. O ambiente literário zacariano situa-se no embrião da apocalíptica.

Antes de passarmos aos conteúdos teológicos das visões, preciso fazer outra consideração. Para muitos estudiosos, Zc 1-6, originalmente, contém sete visões: 1.8- 15; 2.1-4(1.18-21); 2.5-9(2.1-5); 4.1-6a,10b-14; 5.1-4; 5.5-11 e 6.1-8. Assim, Zc 3.1-17 seria uma interpolação, pois é diferente no estilo e no vocabulário, e enfatiza o papel do sumo-sacerdote Josué, depois do desaparecimento de Zorobabel.

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Entretanto, como mostrarei abaixo, as oito visões, inclusive a quarta (3.1-17), são parecidas em seus conteúdos teológicos, devendo, pois, ser analisadas conjuntamente. Passemos agora a tais conteúdos.

Conteúdos teológicos As visões de Zacarias têm como mediação hermenêutica a época do profeta, de acordo com 1.7. Elas respondem à crise suscitada pelo exílio babilônico (1.12). Mas, no contexto de Zacarias, a crise não é provocada pela Babilônia, mas pela presença do Império Persa nas terras de Judá.

Na primeira visão (1.8-11) o profeta contempla a andança de três cavalos, que prestam contas ao anjo do Senhor (v.8, 11). Eles percorreram toda a terra (10). A meu ver, esses cavalos não são anjos, como interpretam alguns comentaristas. A fala do anjo, no v.12, surge a partir da fala dos cavalos no v.11. A terra está estabelecida e tranquila, mas Javé ainda não teve “compaixão de Jerusalém e das cidades de Judá”. Deste modo, há um nítido contraponto entre a fala dos cavalos no v.11 e a do anjo/homem no v.12! Por que isso? Ora, os três cavalos simbolizam o Império Persa, que contava com um forte vasculhamento de mensageiros sobre cavalos, mantenedores do sistema imperialista. Havia uma densa rede de correios imperiais, permitindo “que as ordens o governo

11 Veja uma discussão sobre isso em NOTH, Robert. “Da profecia à apocalíptica via Zacarias”. In: Profetismo: Coletânea de Estudos. São Leopoldo: Sinodal, 1985, p.203-231. 12 Sobre a coleção de ditos, e para uma definição de ditos/perícopes, veja SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras: reflexão e estudo sobre Amós. São Paulo: Paulinas, 2004, p.144-160 (Coleção Bíblia e história). 13 Sobre a apocalíptica no AT, veja STORNIOLO, Ivo. Como ler o livro de Daniel: Reino de Deus e imperialismo. São Paulo: Paulus, 3a edição, 2003, p.9-11 (Série “Como Ler a Bíblia”); DINGERMANN, Friedrich. “O anúncio da caducidade deste mundo e dos mistérios do fim. Os inícios da apocalíptica no Antigo Testamento”. In: SCHREINER, Josef (organizador). Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. São Paulo: Editora Teológica, 2a ed., 2004, p.419-433; BALDWIN, Joyce G. Daniel: introdução e comentário. São Paulo: Edições Vida Nova/Mundo Cristão, 1983, p.50-64; DAVIES, Philip R. “O mundo social dos escritos apocalípticos”. In: CLEMENTS, R. E. (organizador.). O Mundo do Antigo Israel. São Paulo: Paulus, 1995, p.243-263; NOTH, Robert. “Da profecia à apocalíptica via Zacarias”, p.203-231. 14 MCLAUGHLIN, John L. “Recensiones”, p.567; GORGULHO, Gilberto. Zacarias: a vinda do Messias pobre, p.19.

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central chegassem rapidamente até os confins do império. Haviam sido nomeados nas diversas províncias governadores que exerciam o poder em nome da autoridade central e informavam periodicamente sobre o desencadear dos acontecimentos.”15 Assim, o v.10b parece refletir a estrutura do Império Persa; trata-se do “envio” (xlh) dos mensageiros para percorrerem a terra! Para esses “cavalos”, a “terra” estava “habitada e tranquila”. Tudo estava sob controle e em ordem. Mas não é assim que vê o anjo do Senhor!

Então, como resposta ao clamor do anjo, Javé responde com “palavras boas, consoladoras” (v.13). Os ditos nos v.13-17 tematizam a reurbanização de Jerusalém e das cidades de Judá. Javé está indignado contra ha-goim ha-xa’ananim, “as nações tranquilas” (v.15). Estas, a meu ver, precisam ser identificadas com a terra “estabelecida e tranquila” (v.11), a saber, o Império Persa. Nessa perspectiva está a segunda visão (1.18-21). O profeta vê “quatro chifres” (v.19). O termo hebraico qeranot “chifres” no AT simboliza o poder das nações. Os chifres são “o orgulho do touro jovem”16. Eles representam, pois, a força militar de um povo (1Rs 22.11; cf. Mq 4.13). O número quatro é um símbolo de sua universalidade. Portanto, os quatro chifres aludem a todos os inimigos do povo de Javé. Mas os ferreiros vêm para serrar os chifres! As nações, incluindo o Império Persa, ruirão. A terceira visão tematiza a reconstrução de Jerusalém (2.1-5 – Texto Massorético: 2.5- 9). Assim, esta visão mantém relação com os ditos que seguiram a primeira visão (1.13- 17). Mas, essa terceira visão nos alerta sobre as perspectivas da reconstrução de Jerusalém. Pois “um homem” (v.1) almeja reconstruir a cidade com muralhas. No Antigo Oriente Médio, os muros simbolizam a força defensiva de uma cidade. Mas outra é a perspectiva do “anjo”: Jerusalém será perazot teshev, “campos habitados” (v.4b). “Campos” parece ser a melhor tradução para perazot, palavra hebraica que se refere ao mundo camponês! Precisamos entender que, a partir de 587 a.C., Judá foi desurbanizada. “Para a compreensão da história de Israel e dos textos bíblicos, elaborados nesta época, é decisivo tomar em conta que de 587 até 450 Jerusalém não era uma cidade e que, a rigor, a vida urbana inexistia.”17 O v.4b, portanto, aludi a uma proposta: o mundo camponês habitaria no mundo citadino! A divisão entre cidade e campo, as rixas entre esses dois setores, eram muito comuns no mundo do Antigo Testamento.

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A meu ver, o texto zacariano defende o fim dessas dissensões. A glória do Senhor estaria no “meio” de Jerusalém (v.5), exatamente onde estavam os “homens” e “animais” (v.4). A glória do Senhor se manifestaria quando Jerusalém não fosse mais uma cidade caracterizada pela exploração ao campo! Por isso, os muros, que favoreciam o processo de pauperização

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, não poderiam ser reconstruídos. A quarta visão (3.1-10) tematiza a purificação do sacerdócio, apesar da acusação de Satan. Para alguns comentaristas, a acusação ao sacerdócio de Josué parece provir de grupos sacerdotais que almejam conquistar o monopólio religioso em Jerusalém no

15 BOGGIO, Giovanni. Joel, Baruc, Abdias, Ageu, Zacarias, Malaquias – Os últimos profetas. São Paulo: Paulus, 1995, p.74-75 (Coleção Pequeno Comentário Bíblico. Antigo Testamento). 16 BALDWIN, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Edições Vida Nova/Mundo Cristão, 1991, p.82. 17 SCHWANTES, Milton. Sofrimento e esperança no exílio: história e teologia do povo de Deus no século VI a.C. São Paulo/São Leopoldo: Paulinas/Sinodal, 1987, p.27-28 (Coleção Temas Bíblicos). 18 GOTTWALD, Norman Karl. As tribos de Iahweh – Uma sociologia da religião de Israel liberto 1250- 1050 a.C. São Paulo, Edições Paulinas, 1986, 932p. (Bíblia e Sociologia, 2). 19 CROATTO, José Severino. “A dívida na reforma social de Neemias – Um estudo de Neemias 5,1-19”. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana/Ribla. Petrópolis: Vozes, no 5-6, 1990, p.25-34.

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período do pós-exílio.20 De qualquer forma, o texto alude à purificação do sacerdócio no contexto do pós-exílio. Apesar de o sacerdócio ter se corrompido (Am 7.10s.), há uma esperança de que ele seja restaurado e pautado nos valores do profetismo. Nesse contexto surge a promessa da vinda de um “servo”, no fim do v.8: “Porque eis que farei vir o meu servo rebento”. O “servo”, ‘ebed, é cognominado de semah “rebento”, “broto”, “renovo”, “germe”. É um termo messiânico (cf. Jr 23.5). O v.8 está relacionado com 6.12, onde lemos uma afirmação sobre Zorababel. O v.9 menciona a “pedra”, e nela uma “inscrição”. Há uma grande discussão sobre o significado da pedra. Seria um símbolo do Messias?21 Seria pedra de arremate (4.7,9)? A Bíblia de Jerusalém comenta: “Esta pedra única designa, sem dúvida, o templo. Os sete olhos simbolizam a presença vigilante de Iahweh (4.10). A inscrição (‘consagrada a Iahweh) não foi ainda gravada: a construção do Templo não foi concluída.”

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Parece-me que a pedra simboliza a vigilância de Javé, por intermédio dos seus servos. Isso se explicitará na quinta visão (compare 3.9 com 4.10, “sete olhos”). Fundamental nessa quarta visão são o v.9b e o v.10. Alude-se aí à remoção da “iniquidade”. Na perspectiva de Zacarias, tempos de tranquilidade virão (v.10). Mas tal tranquilidade não pode ser efetivada com os persas no controle. Portanto, à luz da primeira e da segunda visões, parece-me que a remoção da “iniqüidade” é uma referência à queda do imperialismo persa.

A quinta visão (4.1-14) mantém relação com a anterior. Pois a quarta visão terminou com uma promessa à “terra” (3.9). A quinta visão também alude à “terra”, ou melhor, ao “Senhor” da terra (4.10b, 14)! Ambas referem-se à reconstrução do templo (3.7, 9; cf. 4.8-10). O verbo ‘md “estar de pé” foi decisivo na quarta visão. Da mesma forma a quinta visão afirmará que Josué e Zorobabel “estão de pé diante do Senhor” (v.14). Mas, noutro aspecto, a quarta visão é complementada pela quinta: aquela aludia a Josué; essa aludirá principalmente a Zorobabel (v.6-10a). Portanto, o que há de inovador nessa quinta visão é a junção de dois poderes: o sacerdotal e o real.

O centro da quinta visão são as duas oliveiras (4.3), que são identificadas com o sacerdote Josué e com o governador Zorobabel (v.14). Ressalta-se que a pergunta do profeta, no v.4, somente é respondida a partir do v.10b, após a palavra dirigida a Zorobabel (v.6-10a). As duas oliveiras são identificadas com os “sete olhos de Javé, que percorrem toda a terra”. Vejo aqui um contraponto à andança dos cavalos da primeira visão, os quais também andaram por “toda terra” (1.11). Aqueles simbolizavam o Império Persa. Aqui, na quinta visão, os “olhos” simbolizam a presença de Javé, através dos seus “dois ungidos”.

O ponto culminante da quinta visão é o v.14. Lemos aí a superação definitiva do império persa. O Senhor (’adon) de toda a terra não é o imperador persa, mas é o Deus de Judá! Na primeira visão quem percorria a terra eram os cavalos (1.7-11). Agora, não eles, mas os “olhos de Javé” percorrem a terra (4.10b)! A presença de Javé suplanta e substitui a presença persa! Ademais, parece que, à luz do v.12, essa presença de Javé seria mantida pelas duas oliveiras. Através de Josué e Zorobabel, Deus está presente!

A sexta e a sétima visões (5.1-4 e 5.5-11) tratam de um mesmo assunto: a purificação da terra (v.3, 6). Assim, elas mantêm a temática das visões anteriores (3.9; 4.14). Na sexta visão o “rolo” parece ter certa relação com o livro de Ezequiel (Ez 2.10). Ele contém o

20 AUNEAU, Joseph. O sacerdócio na Bíblia. Tradução Maria Cecília M. Duprat. São Paulo: Paulus, 1994, p.43-44 (Cadernos Bíblicos, 61). 21 Veja GRONINGEN, Gerhard van. Revelação Messiânica no Antigo Testamento, p.831-832. 22 A Bíblia de Jerusalém, em nota de rodapé.

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julgamento divino. O seu tamanho é igual a do pórtico do templo de Salomão (1Rs 6.3). O v.2 parece até comparar o “rolo” com o pórtico do templo. O v.3 explica o significado do rolo, e também aponta para onde ele vai: “esta é a maldição que avança contra a superfície de toda a terra”. Deste modo, o rolo é a maldição. Ele parece provir do templo, mas sai dele, e “avança” contra “toda a terra”. A palavra ’alâ, “maldição”, é usada no AT em relação à quebra da aliança (Gn 24.41; Dt 28; 29.11). Sim, a aliança foi quebrada pelo “ladrão” e por “aquele que jura falsamente”. Assim, a visão sinaliza a situação de injustiça da época de Zacarias: o roubo (Ex 20.15) e o julgamento mentiroso (Ex 20.7).

A sexta visão afirma a destruição da “casa” daqueles que violam a aliança. A sétima (5.5-11), por sua vez, aludi à construção de uma “casa”, local de habitação da iniquidade (5.11). Mas há relação entre essas visões. A sexta referiu-se à expulsão daqueles que quebram a aliança. A maldade seria extinta da terra. A sétima visão parece continuar essa temática, pois anuncia a saída da maldade (a mulher na efa) da terra de Judá para a “terra de Senaar” (v.11 – Babilônia). Portanto, à semelhança das visões anteriores, a sétima visão continua a aludir à “terra”. Em 5.8 lemos que a mulher no cesto simboliza a “iniquidade”. Mas na última frase de 5.6 também lemos uma designação a ela: “isto

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é o olho deles

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em toda a terra.” A palavra hebraica ‘enam “seus olhos” foi traduzida pelo grego como “sua iniquidade”, propondo então o hebraico ‘azonam.

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Mas a frase hebraica no Texto Massorético parece ser uma referência à forte inspeção persa “sobre terra”. A meu ver, “seus olhos” é uma referência aos inspetores persas, os sátrapas. Eles eram o “olho” do imperador persa! Assim, essa sétima visão alude ao livramento da terra de Judá dos olhos dos persas.

A oitava visão (6.1-8) alude a uma nova inspeção, diferente daquela referida na primeira visão (1.8-11). Os carros desta última visão vão resgatar aqueles que foram dispersos pelo imperialismo. Na primeira visão, os três cavalos simbolizavam a manutenção do império persa através dos sátrapas. Nessa última visão, a andança dos carros visa buscar a comunidade que foi dispersa pelo imperialismo das nações poderosas. Em 6.7 lemos sobre o domínio do Senhor Deus sobre a terra. O Império Persa é superado. Assim, a andança dos carros nesta última visão (6.7) contrapõe-se à andança dos cavalos da primeira visão (1.10). Portanto, essa oitava visão não é paralela à primeira, como querem ver alguns comentaristas. A reconstrução do templo é novamente tematizada em 6.9-15, após a última visão. Muitos estudiosos interpretaram esses versos como uma evidência de que havia uma grande tensão entre grupos reais (adeptos à monarquia judaíta) e sacerdotais no período Persa. Nesta perspectiva, o sacerdócio supera o davidismo real, sobretudo devido ao desaparecimento de Zorobabel (descendente de Davi) da história judaíta no pós-exílio. Então, em Zc 6.11, onde lemos uma alusão à coroação do sumo-sacerdote Josué, na verdade seria originalmente uma alusão a Zorobabel. 26 No entanto, isso é questionável. Como demonstrou recentemente Mark J. Boda, Zacarias dialoga com as grandes tradições da história de Judá, a tradição sacerdotal e real; o texto zacariano dialoga

23 O hebraico zo’th (adjetivo feminino) e ‘ayin são singulares, respectivamente “esta” e “olho”. 24 Para uma melhor tradução em português, a palavra “olho” deveria estar no plural, para concordar com o pronome plural “deles”. Entretanto, mantive uma tradução literal do hebraico: ‘ayin (“olho”), no singular, com o sufixo no plural, “deles”. 25 Bíblia Hebraica Stuttgartensia, Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschalft, 1997, in loc. 26 Veja a nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém.

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também com a tradição profética.27 Portanto, mesmo que o v.11 aluda a Josué, o v.12 não se refere mais a ele. Se a fala do v.11 foi dirigida a Josué, a fala do v.12 começa com as palavras “Eis aqui um homem”. Quando esta frase aparece na Bíblia Hebraica, ela não se dirige ao que foi aludido anteriormente, mas a um terceiro que pode estar se aproximando de longe (2Sm 18:26), ou que pode estar presente na cena (1 Sam 9:17), ou ainda que pode estar ausente, mas acessível (1Sam 9.6).

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Assim, o semah (“renovo” “rebento”, “broto”, “germe”) não pode ser Josué. O semah é alguém que está em cena (“Eis aqui um homem”). Em 3.8 já lemos uma referência ao “renovo”. Joyce G. Baldwin afirma que essas palavras de Zacarias aplicam-se Zorobabel, pois “seu nome significa ‘Renovo da Babilônia”, e não há dúvida de que ele edificou o templo (4.9)”

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. Mas, a última frase de Zc 3.8 alude ao futuro! Assim, ainda que a concepção messiânica tenha uma aplicação histórica à pessoa de Zorobabel, ela ultrapassa o horizonte histórico de Zacarias. Concordando com isso, Alonso Schökel afirma: “Num horizonte histórico, o Germe é Zorobabel (6.12). Num horizonte escatológico, o Germe será o Messias. Assim o chefe histórico é reduzido a elo de uma corrente secular, e a profecia se projeta para um futuro definitivo.”

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Baldwin afirma que os ouvintes de Zacarias “estavam preparados para as funções sacerdotais e reais do Renovo, vendo que Josué e Zorobabel contribuíam para a vinda do Renovo, já que nenhum dos dois o representava completamente, sozinho.”31

E, para que tudo isso acontecesse, o povo de Deus deveria fugir da “terra do norte” (Babilônia, cf. 2.6; 6-1-15). Essa perspectiva da volta imediata da comunidade judaíta deve ter um grande peso na afirmação de nossa pesquisa: as oito visões de Zacarias pronunciam acontecimentos que teriam seus inícios na época do profeta. Nessa perspectiva está o messianismo em Zacarias 1-6.

Conclusão As oito visões aludem à época pós-exílica. A partir daí, começaria uma nova era, que claramente não se restringia somente à era do profeta. Lembremos: a igreja é a comunidade do pós-exílio. Assim os profetas tinham razão em relacionar o advento do novo Davi com o exílio babilônico (Jr 23.5-6, 7-8)! Dessa forma, Zacarias prevê um tempo que começaria em sua época, mas que seria cumprido plenamente num outro momento. E, nas palavras de Jesus, sabemos sobre esse cumprimento: “O tempo está cumprido” (Mr 1.15). De fato, a promessa de Zc 2.10, da morada de Deus com o seu povo, se cumpre em Cristo (Jo 1.14). Nisso concordo com Calvino: “o livramento do exílio babilônico era uma espécie de prelúdio à gloriosa redenção que foi trazida a nós e a nossos pais pelas mãos de Cristo”

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Mas, a meu ver, de acordo com as visões zacarianas, a ‘redenção’ é o livramento da opressão de um império opressor. É justamente na perspectiva da queda do imperialismo persa que Zacarias anuncia a vinda do Messias.

27 BODA, Mark J. “Oil, Crowns and Thrones: Prophet, Priest and King in Zechariah 1:7-6:15”. In: Journal of Hebrew Scriptures. National Library of Canada, volume 3, article 10, 2001, p.1-36. www.purl.org/jhs, acessado em 10.05.08. 28 BODA, Mark J. “Oil, Crowns and Thrones: Prophet, Priest and King in Zechariah 1:7-6:15”, p.16. 29 Veja BALDWIN, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias, p.109. 30 Bíblia do Peregrino, em nota de rodapé. 31 BALDWIN, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias, p.109-110. 32 CALVINO, João. Hebreus. São Paulo: Editora Paracletos, 1997, p.71.

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As implicações da mensagem de Zacarias se estendem à era da Igreja, a comunidade do Messias pobre que viveu com os pobres. Sem dúvida, uma simples leitura nos Evangelhos demonstra que Cristo se marginalizou com os marginalizados, questionou os ícones religiosos e políticos de sua época, que contribuíam para a injustiça e à opressão. Esse questionamento deve ecoar nos lábios na Igreja atual, também.

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