“Eis que a jovem/virgem está grávida” (Is 7.14) – Considerações exegéticas e hermenêuticas sobre Is 7.10-17

Postado em 25 de outubro de 2018 por

Categorias: Artigos

Luciano R. Peterlevitz

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Revista Teologia Brasileira (ISSN: 2238-0388) – Número 16, 2013.

Introdução Por isso, Adonay dará para vós um sinal: Eis que a jovem/virgem está grávida, e dará à luz um filho, e chamará o seu nome Emanuel. Isaías 7.14

Is 7.14 é um dos principais textos que fundamenta a doutrina do nascimento virginal de Cristo. O evangelista Mateus, relatando o nascimento virginal do Messias, cita o texto isaiano, como prova de que as promessas messiânicas veterotestamentárias se cumpriram cabalmente com o advento do Jesus nascido em Belém (Mt 1.23). Mas, por uma simples leitura de Is 7.14 no texto hebraico e no contexto de Isaías 7, constata-se certo dilema em relação à citação do Evangelho de Mateus. Acontece que a palavra “virgem”, como está na maioria das versões em português, é a tradução do hebraico ‘almah, uma jovem, possivelmente recém-casada. Mateus não cita o texto hebraico, mas a tradução grega (Septuaginta), que traduziu ‘almah por parthenos “virgem”. E, por uma simples leitura de Isaías 7 (versos que antecedem e aqueles que seguem o v.14), nota-se que o nascimento do Emanuel teria de acontecer no século 8 a.C., na época do profeta Isaías. Então, será que o evangelista se enganou? A palavra ‘almah aceita a tradução “virgem”? A profecia de Isaías visava um cumprimento restrito à época do profeta, ou visava somente o nascimento de Jesus conforme é relatado no Novo Testamento?

  1. O contexto histórico É importante salientar que a profecia de Isaías a respeito do Emanuel aconteceu no contexto da guerra siro-efraimita. É o que se lê em Is 7.1-2. Trata-se da mobilização da Síria e de Efraim (outra designação para o reino do Norte, Israel) contra Judá, na tentativa de depor o davidita Acaz, já que este se recusou a se aliançar com os sírios e israelitas na luta contra a Assíria. O rei da Síria, Rezim, e o rei de Israel, Peca (7.1), almejavam colocar no trono judaíta “o filho de Tabeal” (7.6), “provavelmente um arameu da corte de Damasco”1. Portanto, a Síria e Israel intentavam destruir a dinastia de Davi, que até então reinara 250 anos sobre Judá. O ano era 734 a.C. A notícia chegou à casa de Davi: “A Síria está aliada com Efraim” (7.2). Esta iminente ameaça contra a dinastia de Davi causou muito temor no palácio de Judá, como se nota em Is 7.2: “ficou agitado o coração de Acaz”.
  2. O contexto literário Is 7.14 está inserido dentro de um contexto literário maior, composto por Is 7.10-17, que por sua vez situa-se em outro conjunto formado por Is 7 – 8. As unidades literárias destes capítulos estão

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Luciano Robson Peterlevitz é Coordenador Acadêmico do curso de Teologia na Faculdade Teológica Batista de Campinas, onde também é professor de Antigo Testamento. Mestre e Doutorando em Ciências da Religião, na área de Bíblia, pela Universidade Metodista de São Paulo. É pastor na Igreja Batista Vida Nova, em Nova Odessa/SP. E-mail: lpeterlevitz@gmail.com.

1 Nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém – Nova Edição, revista e ampliada, São Paulo, Sociedade Bíblica

Internacional/Edições Paulus, 5a edição, 2002.

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relacionadas com a guerra siro-efraimita e com a iminente invasão dos assírios no corredor sírio- palestino. Os seguintes blocos literários antecedem Is 7.10-17: 7,1-2: trata-se de uma introdução histórica. Refere-se à trama dos sírios e israelitas: a deposição de Acaz, almejando a destruição da dinastia de Davi. 7.3-9: este trecho é uma resposta divina contra o intento dos reis da Síria e de Israel, prometendo amparo para Acaz. Isaías vai ao encontro do rei de Judá no “aqueduto do açude superior”. O rei está tomando precauções para o abastecimento de água para Jerusalém, prevendo que o cerco dos sírios e israelitas forçaria o povo a se encurralar para dentro da cidade. Mas, por ordem de Javé, o profeta vai onde o rei está, fazendo-se acompanhado por seu filho se’ar yaxub “um resto-volverá”. O nome do menino detém uma mensagem de esperança para a dinastia de Davi. Acaz não deveria temer o ataque de Rezim e de Romalias (v.4). Eis a promessa divina: a deposição de Acaz do trono e o fim da dinastia davídica não aconteceriam (“Isto não subsistirá, nem tampouco acontecerá”, v.7). Há uma palavra de juízo contra os inimigos de Judá (v.8). Efetivamente os assírios subjugaram Damasco, capital da Síria, em 732 a.C., e destruíram Samaria, capital de Israel, em 721 a.C. Toda a mensagem de Isaías converge para o v.9b: “se o não crerdes, certamente não permanecereis”. A continuação de Acaz sobre o trono davídico depende da fé na palavra divina. Qual será a atitude do rei Acaz, mediante a promessa divina proferida por Isaías? A resposta está em Is 7.10-17.

  1. Tradução literal 10 E continuou Javé2 a falar para Acaz:

11

Pede para ti um sinal de Javé, teu Deus, pede

3

na profundeza

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ou na altura

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para cima, 12 E disse Acaz:

Não pedirei, e não tentarei a Javé

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E disse ele:

Ouvi agora, casa de Davi!

Pouca coisa é cansardes6 os homens que7 cansareis também8 o meu Deus?

14

Por isso, Adonay dará para vós um sinal:

Eis que a jovem

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está grávida,

2 Para a identificação do sujeito do verbo dabar “falar”, pode-se seguir a proposta da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, e inserir yexa’yahu Isaías” no lugar de yhwh, o nome sagrado de Deus, normalmente transliterado por “Javé”. Pois, nos v.11-17, Deus está na terceira pessoa: no v.11, o sujeito refere-se a Javé, e no v.13 o sujeito dialoga com o rei Acaz, mencionando Deus pela primeira pessoa (“meu Deus”). E os v.14-17 procedem da boca do mensageiro, que fala em nome de “Adonay” (v.14) e “Javé” (v.17). Então, a rigor, quem fala no v.10 é Isaías. Mas considerando Isaías como mensageiro autorizado de Javé, pode-se manter o nome divino no texto. 3 “pede”: possivelmente um imperativo de xa’al “pedir”. A Septuaginta e a Vulgata propõem xe’olah “xeol/mundo

dos mortos”. 4 “na profundeza”: tradução de ha’emeq hifil infinitivo absoluto de ‘amoq “ser profundo”. 5 “na altura”: tradução de habeah hifil infinitivo absoluto de gabah “ser alto”. 6 “cansar”: tradução do hifil infinitivo la’ah “cansar”, “fadigar”. 7 “que”: tradução da partícula conjuntiva ki. 8 “também”: conjunção gam “também”, “em especial”.

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e dará à luz um filho, e chamará

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o seu nome Emanuel. 15 Coalhada e mel ele comerá,

até que saiba rejeitar o mal e escolher o bem

16

Pois antes que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem será abandonada a terra, diante de cujos dois reis tu te apavoras. 17 E fará vir Javé sobre ti,

e sobre o teu povo, e sobre a casa do teu pai,

dias que não vieram desde os dias em que separou11 Efraim de Judá: o rei da Assíria12.

  1. Análise exegética O v.10 inicia-se com o verbo hifil yasap “acrescentar”, “continuar”. Assim, Is 7.10-17 é continuação da unidade anterior (v.3-9). A fala isaiana tem um objeto: Acaz, que, de acordo com os v.3-9, prepara-se para a invasão siro-efraimita. O v.11 é o conteúdo da fala profética. Acaz é inquirido a pedir um “sinal de Javé”: Pede para ti um sinal de Javé, o teu Deus, pede na profundeza ou na altura para cima

É importante notar que o termo hebraico ‘ot “sinal” refere-se a algo que seria cumprido num curto espaço de tempo. David Payne afirma que “uma predição pode ser feita para o longo prazo, mas um sinal é por definição um sinalizador na situação contemporânea que aponta para um evento mais distante”13. O ‘ot me’im yhwh “sinal de Javé” certamente relaciona-se com a mensagem de livramento prometida à casa de Davi nos v.3-9. Considerando Isaías como mensageiro divino, pode- se afirmar que a ordem procede do próprio Javé. É Javé quem ordena ao rei Acaz pedir um “sinal”. Isso significa que se o rei Acaz obedecesse à voz divina, e pedisse o “sinal de Javé”, estaria comprovando sua fé (veja v.9b), e afirmando o livramento de Deus das mãos do rei de Israel e da Síria. Tratar-se-ia, pois, de um “sinal de fé”

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. Acaz deveria pedir o “sinal de Javé” para si mesmo: xe’al-leka “pede para ti”. Ou seja, o sinal teria por objetivo comprovar para o próprio rei que Javé cumpriria a promessa de livramento esboçada nos v.3-9a. Acaz responde incisivamente ao pedido do sinal: Não pedirei, e não tentarei Javé (v.12) São dois verbos precedidos pela partícula negativa lo’ “não”. O primeiro verbo é a primeira pessoa do verbo xa’al, o mesmo que no v.11 foi empregado no imperativo. Assim, “não pedirei” é a negativa daquilo

9 “jovem”: tradução do hebraico ‘almah. A LXX (Septuaginta) traduziu parthenos “virgem”. 10 “e chamará”: tradução do qal perfeito na terceira pessoa no feminino. 11 “separou”: tradução do qal infinitivo sur. 12 “o rei da Assíria”: no final do verso. Segundo a Bíblia Hebraica Stuttgartensia, trata-se de uma adição. Mas, veja

John Oswalt, Isaías, Volume 1 – capítulos 1 a 39, São Paulo, Cultura Cristã, 2011, p.268. O texto refere-se à Assíria como instrumento divino de punição à dinastia de Davi. 13 David F. Payne, “Isaías”, em F. F. Bruce, Comentário Bíblico NVI – Antigo e Novo Testamento, São Paulo, Editora

Vida, 2009, p.1007. 14 Milton Schwantes, Da vocação à provocação – Estudos exegéticos em Isaías 1-12, 3a edição ampliada, São

Leopoldo, Oikos, 2011, p.350.

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que no v.11 foi imperativo. É bom realçar que a ordem para pedir o sinal procede de Javé, no v.11. Então o rei judaíta recusa-se a atender a ordem de Deus. No segundo verbo, o rei demonstra uma piedade que mascara sua rebeldia: “e não tentarei Javé”. De fato, no Antigo Testamento, tentar Deus é uma falta grave, e aquele que incorre em tal pecado é severamente punido (Nm 14.22; veja Êx 17.2,7; Dt 6,16). Mas não se deve pensar que Acaz estava preocupado com esta advertência do Antigo Testamento. Pois, como já vimos, foi o próprio Deus quem ordenou o pedido do sinal. Na verdade, o rei disfarça sua incredulidade por uma piedade, que, na verdade, é pervertida; na realidade, Acaz queria confiar mais na provisão da Assíria do que em Deus (2Rs 16.5-9). “Pela letra o rei é um bom teólogo e deveres piedoso, mas tudo isso no espírito e na hora errados.”15 No dizer de Lutero, “…onde Deus manda arriscar, temos que arriscar. Pois obedecer à palavra, não é tentar a Deus”16. Os v.13-17 respondem à incredulidade de Acaz. Percebe-se, no v.13, que a fala de Isaías dirige-se especificamente à “casa de Davi”. Ou seja, a palavra profética mira um setor especifico de Judá: o rei e sua corte. O verbo “cansar/fadigar”, tradução do hebraico la’ah, repete-se nas duas últimas frases do v.13:

Pouca coisa é cansardes os homens que cansareis também o meu Deus?

A incredulidade da “casa de Davi” não somente afrontou ao profeta Isaías (“os homens”17), mas especialmente18 o Deus de Isaías (“o meu Deus”). Já que Acaz recusou a pedir o sinal de Javé para Javé, então o próprio Javé (Adonay) daria um sinal para Acaz. Estamos no v.14. Há uma introdução (v.14a). Seguem-se três frases (v.14b). Na introdução, lemos: Por isso Adonay dará para vós um sinal. A palavra laken “por isso” é uma partícula adverbial de causa. Nos textos proféticos ela é comumente usada para expressar um anúncio de ruína, depois das razões da ruína já terem sido apresentadas (Is 1.24; 5.13; 8.7; 30.13; Mq 3.12; Jr 11.21-22; etc.). Então, pelo início do v.14, percebe-se que o conteúdo a ser expresso na sequencia será de juízo. A razão já foi apresentada no v.13: Acaz, recusando-se a ‘tentar’ Deus (v.12), na verdade, tentou Deus, pois sua piedade pervertida confrontou Deus. O objeto da palavra divina é Acaz e sua corte: lakem “para vós”. Portanto, o v.14 contém uma palavra de juízo sobre a dinastia de Davi.19 No v.14b, lemos três frases:

Eis que a jovem está grávida, e dará à luz um filho, e chamará o seu nome Emanuel.

A primeira frase inicia-se com a partícula hebraica hinneh “eis”. Essa palavra é uma ‘flecha’ que indica a personagem apresentada na sequência: ha-‘almah “a jovem”. A palavra hinneh é como um dedo indicador apontando para “a jovem”.

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Portanto, essa “jovem” está presente quando Isaías proferiu essas palavras. Não se trata de uma personagem inexistente, que ainda viria. Quando Isaías pronunciou hinneh “eis”, Acaz e sua corte olharam para “a jovem”, que “está grávida” (o verbo

15 Milton Schwantes, Da vocação à provocação, p.350. 16 Martinho Lutero, citado por Milton Schwantes, Da vocação à provocação, p.350. 17 Sigo aqui a proposta de Hans Wildberger: com o termo “homens”, o profeta Isaías pensa em si mesmo. Hans

Wildberger, Jasaja 1-12, Neukirchen, Neukirchner Verlag, 1965-1972, p.287-288 (Biblischer Kommentar Altes Testament 10/1). 18 Esse é o sentido da conjunção gam “também”, “em especial”. 19 Otto Kaiser, Isaiah 1-12: a commentary, Philadelphia, The Westminster Press, 1972, p.100-105 (The Old Testament

Library). 20 Milton Schwantes, Da vocação à provocação, p.352.

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harah está no perfeito, e expressa uma ação já concluída). A tradução da palavra hebraica ‘almah propicia acaloradas discussões teológicas. O termo “virgem” procede da versão grega (Septuaginta), que traduziu  ́almah por partenos “virgem”. É verdade que alguns dicionário hebraicos sugerem a tradução “virgem” para ‘almah. Afirma-se que não há ocorrência pela qual possa ser provado que a palavra designa uma mulher que não é virgem.21 Segundo essa ideia, em alguns textos do AT a palavra  ́almah refere-se a virgens: por exemplo, Gn 24.43; Ex 2,8; Ct 6.8. No entanto, parece-me que a palavra usada nos dois primeiros textos simplesmente significa “moça”. Em Gn 24, ‘almah é sinônima de na’ara, uma palavra que significa “moça”: nos versos 14, 16 e 28 usa-se a palavra na’ara, ao passo que no v.42 usa-se ‘almah, e este verso claramente é paralelo ao v.14. Ademais, há uma palavra específica para se referir à “virgem”, em Gn 24.16: betulah. Quanto a Ct 6.8, ‘almah pode ser tradudiza por “virgem”, já que diferencia- se de “concubinas”. Mas isso não prova que ‘almah sempre deva ser traduzido por “virgem”, com já notamos em Gn 24. Portanto, ‘almah significa “mulher jovem”

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, ainda sem filhos, mas não necessariamente virgem, já que podia ser recém-casada. “Essa palavra hebraica não se refere à virgindade da ‘moça’ ou ‘jovem mulher’, mas à sua juventude.”23 Quem seria esta jovem? É notável que a jovem mulher seja especificamente identificada. Pois o artigo precedente ao substantivo ‘almah tem uma função demonstrativa24, significando, portanto, “esta mulher”. A mulher está presente no diálogo entre Isaías e Acaz. Para uns, a jovem mulher seria a esposa de Acaz e o menino seria Ezequias, o substituto de Acaz no trono davidita.25 Mas esta interpretação não se encaixa à informação de 1Rs 18.2: Ezequias assumiu o trono em 716 a.C., com vinte cinco anos de idade; a profecia de Is 7.14 foi proferida em 734 a.C., quando Ezequias já tinha aproximadamente seis anos. Para outros estudiosos, a ‘almah é a esposa de Isaías.

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Esta afirmativa é corroborada pelo v.14b, no qual evidencia-se o distanciamento entre a profecia de Isaías e a corte de Acaz, e o Emanuel representa os fieis (entre os quais o profeta e sua família se incluem) que esperam o livramento do Senhor. As duas últimas frases do v.14b referem-se ao “filho”, ao ‘immanu ‘el “Emanuel”, literalmente “conosco (está) Deus”. A identificação do Emanuel no cenário de Isaías depende da identificação da “jovem”. Mas, uma coisa é certa: o nome do menino aponta certo distanciamento entre o profeta Isaías e a corte de Davi representada pelo rei Acaz. Deus está conosco, Isaías diz. O problema é que o Deus de Isaías não é mesmo Deus de Acaz. Deus, na concepção de Acaz, era impotente, incapaz de livrar Judá das mãos dos reis da Síria e de Israel. Em contrapartida, para Isaías, Deus é poderoso para tal livramento, e fiel para executar o que prometeu. Por isso, na última frase do v.13, o profeta, dirigindo-se a Acaz, chama Javé de “meu Deus”. A profecia do Emanuel distancia-se da incredulidade, e aloca-se ao lado daqueles que aguardam o livramento de Javé. Então, a ‘almah não está no palácio, mas entre aqueles que confiam em Deus, diferentemente de Acaz e sua corte que confiam no militarismo assírio. A “mulher jovem” pode ser identificada com a “profetisa”, a esposa

21 Allan A. Macrae, artigo ~l[ ‘lm II, em R. Laird Harris; Gleason L. Archer Jr., Bruce K. Waltke (organizadores),

Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, São Paulo, Vida Nova, 1998, p.1125-1126. 22 J. Ridderbos, Isaías: Introdução e comentário, 2a edição, São Paulo, Vida Nova, 1995, p.102 (Cultura bíblica; v.17). 23 Milton Schwantes, Da vocação à provocação, p.352. Essa é a mesma interpretação de J. Ridderbos, Isaías, p.102. 24 Johannes Hollenberg e Karl Budde, Gramática elementar da língua hebraica, São Leopoldo, Sinodal, 1972, item

15a3. 25 “Acaz estava apavorado e sabia-se ameaçado de morte. Sabia que a existência da nação também estava sob o risco. O nascimento do seu filho era a garantia da perpetuação da dinastia davídica, da qual ele, mesmo sendo infiel a Iahweh, era o representante.” Isaltino Gomes Coelho Filho, Isaías: O Evangelho do Antigo Testamento, Rio de Janeiro, JUERP, 2001, p.96. 26 Milton Schwantes, Da vocação à provocação, p.353. John Oswalt identifica a ‘alma com a esposa de Isaías, ao

afirmar que o Emanuel é o mesmo menino mencionado em 8.1-4, o Maher-xalal-hax-baz “Rápido-Despojo-Presa- Segura”. Para Oswalt, há um nexo entre 8.3 e 8.10; este último texto menciona o Emanuel. John Oswalt, Isaías, Volume 1 – capítulos 1 a 39, São Paulo, Cultura Cristã, 2011, p.267. O problema é que a profecia de 8.4 localiza- se, aparentemente, muito mais próxima à destruição dos inimigos de Judá do que a profecia de 7.16.

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de Isaías (Is 8.3). Os “filhos” da profetiza e de Isaías tornaram-se “sinais e símbolos em Israel da parte do Senhor dos Exércitos” (Is 8.18). O v.15 descreve um tempo de escassez material. O Emanuel comeria “coalhada e mel”. Alguns intérpretes acreditam que tais alimentos aludem a um tempo de abastança. De fato, coalhada e mel para os antigos nômades da Palestina significavam fartura. Mas, considerando-se que a palavra isaiana dirige-se àqueles que estão no palácio, acostumados com abundância de alimentos mais desejáveis do que a coalhada e o mel, então pode-se inferir-se que a profecia isaiana aponta a um período de escassez. Como já notamos, o sinal de Deus para Acaz expressa o juízo sobre a casa de Davi. Isso é melhor esclarecido nos v.16-17. Mas, o v.15b assevera que esse tempo de racionamento alimentar duraria até que, no Emanuel, surgisse a consciência ética de discernir entre o mal e o bem. Isso aconteceria quando o menino tivesse aproximadamente doze anos27 (mas não é um período exato de tempo). Esse período (aproximadamente 12 anos) seria marcado pela escassez de alimentos, bem característicos em período de guerra. Mas, quando o Emanuel se tornasse um ‘rapaz’ capaz de discernir entre o mal e o bem, os inimigos de Acaz, os reis da Síria e de Israel, seriam derrotados. O v.16 explicita o que aconteceria, quando o menino soubesse rejeitar o mal e escolher o bem: será abandonada a terra, diante de cujos dois reis tu te apavoras. A profecia de Isaías foi proferida em 734 a.C. De fato, em 732, a Assíria subjugou Damasco, e em 722 Samaria caiu mediante o poderio assírio. Assim, Isaías, e o próprio Emanuel, contemplaram a queda dos dois reinos que ameaçavam Judá. O Emanuel já teria a capacidade de discernir entre o mal e o bem; teria, portanto, a capacidade de entender a ação de Deus na história do seu povo, e perceberia assim o mal da incredulidade e o bem da confiança em Javé. Mas, há ainda um último aspecto do “sinal”, no v.17. Trata-se da vinda do “rei da Assíria” contra a dinastia de Davi (“sobre ti”/ “sobre o teu povo” / “sobre a casa do teu pai”). O rei Acaz, diante da ameaça de invasão dos reis da Síria e de Israel, preferiu confiar em Tiglate-Pileser, rei da Assíria, a confiar na provisão de Javé prometida através de Isaías. De fato o rei assírio livrou Judá da ameaça (2Rs 16.5-9). Mas logo o aspecto salvador de Tiglate-Pileser se revelaria como perigoso para Judá. Em 701, a Assíria arrasou as terras de Judá, apesar de não ter conseguido entrar em Jerusalém (Mq 1.9-16; Is 22).

Portanto, pode-se resumir assim o “sinal” de Deus para o rei Acaz: – o nascimento de um menino, expressando juízo para a casa de Davi e esperança para aqueles que confiam em Javé; – um período de escassez experimentado pelo menino; – destruição dos inimigos da casa de Davi.

  1. Significado hermenêutico do Emanuel Mas afinal, “a jovem” mencionada em Is 7.14 é uma personagem histórica do século 8 a.C. ou é Maria, mãe do Senhor? O Emanuel é um personagem histórico contemporâneo ao profeta Isaías ou é Jesus? O Emanuel tem duplo sentido. Um, restrito à época do profeta do século 8. Outro, aplicável a Jesus. Ou, em outros dizeres, a profecia de Isaías se cumpriu em dois estágios. O primeiro, diz respeito à época do profeta. O Emanuel nasceria num curto período de tempo (7.15-16). Mas, num segundo estágio, a profecia de Isaias se cumpriu definitivamente em Cristo, conforme relatou o evangelista Mateus (Mt 1.23). Mesmo que o Emanuel fora um personagem contemporâneo a Isaías, Mateus não

27 Ou vinte anos. Otto Kaiser, Isaiah 1-12, p.104.

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estava errado ao afirmar que, com o nascimento de Jesus, se cumprira a palavra do profeta. Mateus era judeu, e, “familiarizado com o método hermenêutica dos rabinos, ele se vale da tipologia, a prática de ver um evento ou uma pessoa como tipo de outro evento ou uma outra pessoa.”28 Aqueles que confiavam no poder libertador do Senhor, como Isaías e sua esposa, foram protegidos do ataque siro-efraimita. E Deus mantém-se fiel “nos tempos de angústia que se seguem, até que culminem no nascimento de Cristo”

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. Nesse ponto, é importante notar o que diz Gerhard van Groningen:

“A virgem, que era um sinal para Acaz, foi um cumprimento inicial no sentido de que foi uma precursora ou, mais precisamente, um tipo de Maria. Esta, ao dar o nascimento de Jesus, realizou completamente o que tinha sido uma realização incompleta, embora real. Considerando que Isaías profetizou a respeito do nascimento de Jesus como o cumprimento seguro e completo da promessa de Yahweh a Davi (2Sm 7.12-16), o sinal de Acaz a respeito da virgem e seu filho era um estágio necessário no desenvolvimento do plano de Yahweh quando a casa de Davi esteve sob uma severa ameaça de extinção.”30

O comentário de Lohfink também é oportuno:

“Naturalmente, só se pode dizer a última palavra quando se reconhece o pressuposto de Mateus, quer dizer, que Jesus de Nazaré é aquele que tinha sido esperado pelos séculos. Já de início, Isaías tinha querido dizer apenas uma só coisa! Deus permanecerá fiel às suas promessas feitas à dinastia de davídica. Mateus queria dizer exatamente uma só coisa: Deus permanece fiel às suas promessas feitas à dinastia davídica. E assim ele diz, precisamente, que a palavra do profeta foi realizada em Jesus de Nazaré.”

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Conclusão O Emanuel referido em Is 7.14 é um tipo, um anúncio do Cristo que viria. Do mesmo modo, “a jovem” é uma profecia referente não somente à mãe do Emanuel contemporâneo de Isaías, mas à Maria, mãe do Senhor. Por um lado, a profecia isaiana refere-se a acontecimentos a serem cumpridos em curto prazo, na época do profeta. Por outro lado, certamente a profecia não se esgota com os acontecimentos envolvendo Judá oito séculos antes de Jesus. Assim, talvez não devêssemos simplesmente perguntar se a palavra ‘almah pode ou não ser traduzida por “virgem”, em Is 7.14. Deveríamos perguntar em que sentido esse termo hebraico deve ser traduzido. No sentido exegético, a tradução “a jovem” é preferível. Mas, hermeneuticamente, interpretando o Antigo Testamento na perspectiva do Novo Testamento, “virgem” torna-se uma tradução também aceitável de Is 7.14, no contexto das expectativas messiânicas que os judeus alimentavam quando o filho de Maria nasceu em Belém da Judéia. Por isso, ambas as traduções, “a jovem” e “a virgem”, são admissíveis. Há ainda outro aspecto deveras importante na promessa da vinda do Emanuel. O Emanuel, para a casa de Davi, simboliza tanto a esperança quanto o juízo. É esperança, porque Deus promete a destruição das nações que se levantam contra a dinastia escolhida para trazer o Messias ao mundo.

28 Isaltino Gomes Coelho Filho, Isaías: O Evangelho do Antigo Testamento, p.98. 29 J. Ridderbos, Isaías, p.102. 30 Gerhard van Groningen, Revelação messiânica no Antigo Testamento: A origem divina do conceito messiânico e

seu desdobramento progressivo, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2003, p.515. 31 Norbert Lohfink, Profetas Ontem e Hoje, São Paulo, Edições Paulinas, 1979, p.68.

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